5 de outubro de 2013

A ORIGEM DO UNIVERSO, DO HOMEM E DO PECADO



Pr. José Vidigal Queirós

A DOUTRINA DA CRIAÇÃO SEGUNDO O ANTIGO TESTAMENTO
             A Bíblia, em toda a sua amplitude, é o registro divinamente inspirado da História da Salvação. Fazer teologia bíblica implica, antes de tudo, partir desta visão, do que significam as Escrituras. A Bíblia só faz sentido e tem importância para o homem quando é encarada como um relatório da revelação do Deus Eterno, onde estão definidos a origem e o destino do universo e do homem.
O Velho Testamento é o documento sagrado providenciado pelo próprio Deus onde ele revela a origem do homem, e, de modo específico, a origem de Israel, como povo de Deus, e sua missão no mundo das nações. O livro de Gênesis é o livro da história da origem de Israel e da revelação do propósito universal de Deus para com todas as nações da terra, que soa como uma promessa que será cumprida ao longo e no final de toda a história.

 A Criação
          O Antigo Testamento nos apresenta declarações diversas sobre a criação, as quais podemos classificar em aquelas de conteúdo teológico e propósito pedagógico e aquelas que apenas celebram o Criador e a criação, através de manifestações de louvor e adoração a Deus como Soberano do Universo. Duas narrativas da criação têm conteúdo teológico: uma relacionada com o código sacerdotal (Gn 1.1-4a) e a narrativa javista (Gn 2.4b-25). Estas passagens tratam da pré-história e como diz G. Von Rad, são “uma preparação da ação salvadora de Deus em Israel”.[1]
O livro de Gênesis, na narrativa da criação, dá uma atenção singular de grande relevo à criação do homem. “O mundo inteiro se submete ao homem, considerado o ponto culminante de toda a criação [...]. O homem é o centro em torno do qual Deus distribui as suas ações e, para Gn. 1:1ss, é o vértice de uma pirâmide cosmológica".[2]
A hermenêutica da narrativa da criação, no livro de Gênesis, ensina o seguinte:
a)    O homem, mesmo sendo obra das mãos de Deus, é portador da imagem do seu próprio Criador, isto é, dotado de atributos divinos (1:26-27).
b)   O mundo e a natureza foram criados por causa do homem. Deus entregou ao homem, como seu representante, o domínio sobre toda a criação terrena (1:28).
c)  A natureza biofísica – animal e vegetal – é destinada pelo Criador como fonte de preservação da vida humana (1:29-30).
d)   O mundo e o homem, ao serem criados, atingiram o padrão de perfeição determinado por Deus, segundo a sua soberana vontade (1:31).

Deus Criador
Na narrativa da criação, o livro de Gênesis descreve Deus da seguinte forma:
a)    Um ser transcendente – a transcendência de Deus é testificada pela declaração de que "Deus criou os céus e a terra" (Gn. 1:1). Esta transcendência implica em que o Criador encontrava-se fora das limitações do tempo e das dimensões do universo criado.
b)    Um ser onipotente – a criação revela e comprova que o poder de Deus é absoluto e sem medida. O ato de criar (produzir do nada), isto é, gerar o existente a partir do inexistente, não pode ser explicado pela lógica e razão humanas, mas testifica que o poder do Deus Criador é imensurável.
c)     Um ser soberano – Deus é apresentado como o Senhor da Criação. Sua soberania advém de seu infinito poder pelo qual ele chamou à existência o universo. Tudo que foi criado é seu patrimônio, pertence-lhe por direito. Tudo que foi criado veio a existir por sua livre vontade e deliberação. Interpretando a narrativa da criação o salmista diz: “Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Sl 33:9). As narrativas do dilúvio, da obstrução divina à construção da Torre de Babel e da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra são exemplos da manifestação da autoridade do Deus que julga e controla os atos do homem.
d)  Um ser único – os nomes atribuídos a Deus no livro de Gênesis não manifestam, sob nenhuma hipótese, a idéia politeísta da divindade; nem mesmo da Trindade, segundo o Cristianismo entende, pois, em tal estágio da revelação divina, não havia tal concepção de Deus. Tudo que Moisés pretendia era descrever os atos de Deus na criação do universo.
Em Gn. 1:1, embora o nome hebraico Elohim atribuído a Deus esteja no plural, o verbo criar (em hebraico bara') está no singular. Moisés, em todo o Pentateuco, enfatiza a unicidade de Deus como forma de combater o politeísmo egípcio e cananeu predominante na época. Os quatro primeiros mandamentos são ordens expressas a Israel que proíbem não só a idolatria como também estabelecem o culto ao único Deus que criou o mundo em seis dias e, no sétimo, descansou.
Elohim, plural de Eloach (que designa força e poder), é o nome que identifica o Deus Criador. Este nome está no plural para identificar a majestade, a grandeza e o poder de Deus como um Ser Supremo e inigualável.
e)   Um ser pessoal – na primeira narrativa da criação (Gn. 1:1-2:3), Deus é identificado pelo nome Elohim. Mas, a partir de Gn. 2:4 até 3:23, Deus é identificado com o nome Yahweh. Nesta segunda narrativa da criação, o sujeito de cada verbo usado para designar uma ação divina é Yahweh Elohim. Esta é uma expressão usada para identificar Yahweh, o Deus dos hebreus, com Elohim, o Criador.

          Um nome identifica uma pessoa e, por esta razão, a concepção hebraica de Deus é de um ser pessoal que se relaciona com o homem. A linguagem utilizada para descrever a pessoa e as ações de Deus é essencialmente antropomórfica, manifestando sentimentos, emoções e intenções de Deus (Gn. 6:6-7; 8:1; 8:21).

     Ato Criador de Deus
         Como Deus criou o mundo? Esta é uma questão que a Teologia responde da seguinte forma: através da palavra de um Deus que se comunica. A expressão "E disse Deus" (Gn. 1:3, 6, 9, 11, 14, 20, 26, 29; 2:18) é o registro revelador que responde a questão acima. A criação é, portanto, resultado do poder dinâmico da palavra de Deus. O poema bíblico, expresso no Salmo 33:6, 9, declara: "Os céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca, o exército deles... Pois ele falou e tudo se fez; ele ordenou e tudo passou a existir" (cf. Hb 11:3).

          Com exceção do homem, toda a criação é produto da palavra criadora de Deus. “Só a palavra estabelece uma continuidade entre Deus e sua obra [...]. O mundo é chamado à existência pela vontade livre de Deus, porque é propriedade de Deus e porque Deus é o seu Senhor”.[3]
O método da criação, na narrativa do Gênesis, é tão claro como a sua fonte: era Deus quem criava e Ele o fazia através da sua palavra. A criação por meio da palavra enfatizava algo mais que o método. Ressaltava que a criação estava de acordo com o conhecimento prévio de Deus com respeito ao mundo, pois falou aquilo que já havia pensado e planejado.

    Significado de "Criar"
         Os verbos hebraicos utilizados para descreverem o ato criador de Deus são: bara' = criar (Gn. 1:1, 21, 27; 2:3-4; 5:1-2; 6:7); yasar = formar, modelar, moldar (Gn. 2:7; cf. Is. 43:1; 45:18; Am. 4:13); 'asah = fazer, fabricar (Gn 1:26, 27; cf. Is. 41:20; 45:18); e kânâh (Gn 14.19, 22; Dt 32.6; Pv 8.22; cf. o nome próprio Elcana) que tem origem na religião cananeia.

        Dentre estes, bara' é o mais importante; é o único que, quando empregado, Deus é o único sujeito e nunca está relacionado ao ato de criar a partir de um material preexistente. Com base em Hb. 11:3, entendemos que a idéia de criação indica um ato divino de "produzir do nada".

          Em Is. 45:18, os três verbos são usados para designar o ato criador de Deus; o que nos leva a entender que os mesmos podem ser sinônimos: "Porque assim diz o Senhor, que criou (bara') os céus, o único Deus, que formou (yasar) a terra, que a fez ('asah) e a estabeleceu (kun); que não a criou (bara') para ser um caos; mas a formou (yasar) para ser habitada: Eu sou o Senhor e não há outro". Concluímos que a narrativa da criação revela Deus como a causa da existência do universo – céus e terra – e que o mesmo foi criado pelo poder dinâmico da palavra de Deus.

      A bênção de Deus
Por duas vezes, o livro de Gênesis menciona uma palavra de bênção procedente de Deus sobre tudo que havia sido criado. Nas duas passagens (Gn 1.22 e Gn 1.28), todas as criaturas foram dotadas da capacidade de procriação, sendo que a raça humana, além de ser dotada da capacidade de procriar-se, é incumbida de uma missão: subjugar e ter domínio sobre a terra e tudo que nela existe.

CRIATURAS INFERIORES (Gn 1.22)
O HOMEM (Gn 1.28)
Então Deus os abençoou, dizendo...
Então Deus os abençoou e lhes disse...
Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas dos mares; e multipliquem-se as aves sobre a terra.
Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.

A missão de subjugar e dominar não consiste numa licença para abuso da ordem divina. Como diz Kaiser, “O homem não tinha de ser um tirano e uma lei para si mesmo. Ele tinha de ser apenas vice-regente de Deus, e a Ele, portanto, tinha que prestar contas. A criação foi um benefício para o homem, mas o homem tinha de ser proveitoso para Deus!” [4].
Uma terceira palavra de bênção refere-se ao encerramento da obra divina: “Abençoou Deus o sétimo dia, e o santificou; porque nele descansou (shabath) de toda a sua obra que criara e fizera” (Gn 2.3). O sétimo dia é chamado “Sábado” (shabbath) porque nele era comemorado a cessação (shabath) da obra criadora divina. Aqui a história é assinalada pelo primeiro dos três marcadores de tempo da ação divina na criação que a revelação registra: (1) o Sábado; (2) o “está consumado” de Salmo 22.31; Jo 19.30 – a divisão entre a redenção prometida e a redenção levada a efeito – (3) o “tudo está feito” de Apocalipse 21.6 – a divisão entre a história e a eternidade.
Deus fez que o sétimo dia fosse santificado, isto é, separado dos demais dias para um propósito sagrado: um memorial perpétuo por ter sido nele completada a criação do universo. O “descanso” no sétimo dia denota uma simbologia para o homem que vai além da interrupção da jornada semanal de trabalho; ou seja, nele o homem busca em seu Criador a realização de suas aspirações transcendentais.

A ORIGEM DO PECADO E A PROMESSA DE REDENÇÃO (Gn 3:1-24)
             Exatamente porque o homem fora criado livre, sua lealdade a Deus precisava ser submetida à prova para que tal lealdade resultasse de uma deliberação do homem e não de uma coação divina. Para tanto, Deus colocou no jardim a "árvore do conhecimento do bem e do mal". Conhecer o mal teria consistido no rebelar-se contra Deus, comendo da árvore, e no sofrer as conseqüências de tal ato.
          O homem foi criado em estado de pureza e integridade moral, mas, por outro lado, um ser imperfeito, com possibilidade de pecar. Como pessoa, dotado de consciência e caráter, o homem teria de assumir total responsabilidade por suas decisões e seus atos.

     A Tentação e Queda do Homem (Gn. 3:1-7)
         O Antigo Testamento não propõe que o pecado tenha origem em outro ser que não seja o homem. A serpente, a quem o Antigo Testamento jamais a identifica com o Diabo, Satanás, no contexto da narrativa, assume a figura de veículo da tentação, não de responsável pelo pecado. Não há no Antigo Testamento a concepção de um universo dualista ou pluralista. Portanto, a origem do mal é um mistério que o Antigo Testamento não se propõe a revelar.
No que se refere à tentação, esta se manifestou com as seguintes características:
a)  Não começou nem terminou com um apelo ao pecado, mas com uma acusação contra Deus de não dizer a verdade, de enganar o homem e não merecer sua confiança.
b)  Realizou-se através do despertamento da vontade de satisfazer ao desejo pessoal de grandeza.
c)   Realizou-se como resultado de uma deliberação consciente humana, uma vez que Deus houvera advertido o homem das conseqüências de seu ato de desobediência.

       As Conseqüências do Pecado (Gn. 3:8-24)
No que se refere aos efeitos no homem e conseqüências para o mundo, o pecado produziu os seguintes resultados:
a)  Produziu no homem os sentimentos de vergonha, frustração, culpa e medo.
b)  Atraiu sobre o homem a sentença divina de juízo e condenação à morte.
c)   Trouxe como conseqüência para o mundo a maldição de Deus sobre a terra e a natureza em geral. Esta, antes sujeita ao homem, se lhe tornou adversa.
d)  Sob hipótese nenhuma, o Antigo Testamento sugere que o homem e a mulher tenham sido amaldiçoados por Deus, uma vez que estes já haviam sido abençoados (Gn 1.22, 28).
e)  O pecado se alastrou como uma avalanche sob a raça humana que se degenerou totalmente. “Até a época de Noé, Deus viu que ‘era continuamente mau todo desígnio (yeser) do coração’ do ser humano” (Gn 6.5).[5] Muitas passagens do Antigo Testamento têm sido usadas para uma demonstração da universalidade (e até hereditariedade) do pecado (1Rs 8.46; 2Cr 6.36; Jó 14.4; Sl 51.5; 58.3; Pv 20.9; Ec 7.20; Is 48.8). Não o pecado, mas a natureza decaída conseqüente do pecado é hereditária.

      A Promessa de Redenção (Gn. 3:15)
             A queda do homem fê-lo perder a bênção e ficar destituído da glória de Deus para a qual fora criado e, em troca, a maldição foi sua herança imediata (Gn. 3:16-19). A maldição culminou na morte do homem em todas as dimensões de sua vida; e tal morte consistiu no confisco da vida, cujo resgate teria de vir por meio de um descendente da mulher (só da mulher e não do homem). Assim, a palavra profética divina trouxe, ao longo da história, a sentença do juízo e a esperança de redenção, que nasceu através de três promessas registradas em Gênesis.

 Primeira Promessa
          A primeira promessa surgiu no contexto de uma sentença de maldição que consistiu numa palavra profética de juízo sobre a serpente (vv. 14-15), sobre a mulher (v. 16) e sobre o homem (vv. 17-19). Em cada caso, de acordo com a exposição de Kaiser Jr.[6], a razão da maldição foi declarada da seguinte forma:
a)    Satanás logrou a mulher;
b)    A mulher escutou a serpente;
c)     O homem escutou a mulher;
d)    Ninguém escutou a Deus.

          Neste contexto, Deus fez uma promessa que soou como uma esperança profética de libertação do homem por meio de um descendente da mulher. Primeiro que tudo, Deus haveria de instigar uma hostilidade – "porei inimizade" – que culminaria em um duelo final entre a "descendência da serpente" e o "descendente da mulher", o qual traria a vitória sobre o tentador e, por fim, o resgate do homem – "Este te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar".

 A Segunda Promessa
          A queda do homem teve como conseqüência a degeneração de toda a humanidade que se tornou escrava da sensualidade (Gn. 6:1-3), perversa (Gn. 6:5) e a terra se encheu de violência (Gn. 6:11). A degeneração atingiu proporções intoleráveis e Deus decidiu exterminar toda aquela geração e começar tudo de novo através de Noé com o qual fez uma aliança com propósito salvífico (Gn. 6:17-18), manifestando sua graça redentora (Gn. 6:8) e vindicando sua justiça para dissuadir os homens do pecado.
            Após o dilúvio, a "nova humanidade" foi abençoada por Deus que com ela firmou uma aliança (Gn. 9:1-7). O pecado de Cam trouxe como resultado uma palavra profética com duplo conteúdo: juízo de maldição sobre Canaã, filho de Cam, e a promessa de que Deus habitaria no meio dos semitas (Gn. 9:25-27). A nova humanidade a ser gerada da descendência de Noé haveria de ser resgatada e o redentor prometido – descendente da mulher – teria de vir da linhagem de Sem.

A Terceira Promessa
         A terceira promessa divina surgiu, como nas duas outras vezes, num contexto de rebelião contra Deus. A humanidade novamente abençoada estava destinada a multiplicar-se e encher a terra (Gn. 9:1). Mas, em oposição aos planos de Deus, os homens decidiram não se espalhar, mas manterem uma unidade com propósitos indevidos (Gn. 11:4).
              A intervenção divina fez frustrar o plano dos homens, que foram espalhados por toda a terra, gerando nações e povos, dentre os quais os semitas geraram o povo hebreu (filhos de Abraão). O patriarca Abraão foi o escolhido por Deus para gerar uma descendência. Com ele Deus firmou uma aliança e fez uma promessa que consistiu em estender, através de sua descendência, sua bênção a todas as nações da terra. Somente no Novo Testamento é que Deus revela o teor da bênção: salvação a todos.


Pr. José Vidigal Queirós


[1]  Gerhard VON RAD. Teologia do antigo testamento, p. 148.
[2]  Ibid., p. 149.
[3]  G. VON RAD. Teologia do antigo testamento, p. 150.
[4]  Walter Kaiser Jr. Teologia do antigo testamento, p. 78.
[5]  Ralph SMITH. Teologia do antigo testamento. p. 278.
[6]  KAISER Jr. Walter C. Teologia do antigo testamento. p. 80.

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