O
tema ora abordado flui dos Estatutos da Aliança
que, segundo o Antigo Testamento, definem o aspecto legal da vida sob a
autoridade de Deus. Isto pressupõe o estabelecimento de um sistema através do
qual a ordem social, na vida do povo
de Deus, deveria ser regida por dois princípios: o direito e a justiça. Ao direito correspondia o dever, tanto individual como coletivo, do
povo de Deus reger sua vida, segundo o princípio da justiça. Para tanto, a lei divina demarcava os limites e
estabelecia os princípios pelos quais a natureza espiritual e moral do homem
haveria de ser moldada, para conformar-se aos aspectos descritivos da natureza
do ser de Deus.
O
referencial bíblico que embasa este estudo encontra-se em duas passagens da
profecia vetero-testamentária: Isaías 58.1-2 e Jeremias 5.4-5. Em ambos os
textos, os profetas denunciam com ênfase o desprezo que Israel demonstrou pelo “direito
do seu Deus”. Antes de tudo, é necessário frisar que o objetivo aqui
não consiste numa exposição exegética do significado do termo direito de Deus encontrado nestas
passagens bíblicas, mas em apresentar uma concepção teológica plausível do direito como o elemento designativo da dignidade divina que, pela
jurisprudência do próprio Deus, é estendida também a cada ser humano que
compartilha com o seu Criador os mesmos atributos.
1.
Direito
e justiça, segundo a Tôrah
O
termo direito está atrelado ao
princípio fundamental da justiça,
prescrito pela lei divina. Eichrodt, ao referir-se ao tema bíblico do direito no contexto da legislação
mosaica, declara que “se perguntarmos pela natureza singular do direito
mosaico, comparando-o com o de outros povos antigos, a primeira coisa que se há
de destacar é a ênfase com que todo
direito se refere a Deus. Todo o direito, e não somente o cultual, aparece
como uma exigência direta de Deus; violá-lo é um sacrilégio contra Yahweh”.[1]
Neste sentido, o direito, no contexto
da Antiga Aliança, é instituído e sustentado por Deus através dos seus “mandamentos, estatutos e juízos”,
prescritos na Tôrah.
Distinto
do Código de Hamurabi, que se “autodenomina obra do próprio rei”, opina
Eichrodt, “em Israel, ao contrário, a conexão entre religião, lei e moral está
mais viva; todo atentado contra a lei é entendido como um pecado contra Deus; o
legislador divino é quem tem a palavra em todo momento; a obra do legislador
humano fica pulverizada após ele”.[2]
A legislação divina, promulgada a Israel pela mediação de Moisés, demonstra a
superioridade da vida humana diante de todas as coisas. Ela mostra um profundo
sentido de justiça; “sua explicação não pode se achar em outra coisa que não
seja o conhecimento de um Deus que criou o homem à sua imagem e que por isso,
ainda quando este se torna digno, o defende em sua dignidade humana e respeita
o seu direito à vida”.[3]
A
concepção teológica de direito requer
um exame das Escrituras, onde os termos usados na linguagem jurídica
vetero-testamentária expressam a vontade de Deus para com o seu povo eleito.
Inicialmente, três passagens bíblicas serão consultadas. A primeira é Ex 23.6: “Não perverterás o direito (משפט mishpat)
do teu pobre na sua demanda.
Guarda-te de acusares falsamente, e não matarás o
inocente e justo
(צדיק tsaddiyq);
porque não justificarei
(צדק tsadaq)
o ímpio”.
O
imperativo divino – “não perverterás o direito do teu pobre” – denota a
proibição de qualquer ato que viole o direito
(משפט mishpat)
instituído por Deus em sua lei, pois isto fere a dignidade humana. A condição
de pobreza não se constitui num status social que inferioriza o ser humano,
considerando-o digno de menosprezo, isto é, destituindo-o do valor que ele tem
e da dignidade que a lei divina lhe atribui. Sentenciar à morte um justo (צדיק tsaddiyq)
por ser pobre constitui-se num ato de perversidade. Até mesmo uma falsa
acusação é reputada como intolerável e, por esta razão, Deus jamais justificará o perverso.
Na
segunda passagem, Lv 19.15, a lei divina estabelece o princípio da
imparcialidade no julgamento: “Não
farás injustiça (עול ̀avel) no
juízo (משפט mishpat), nem favorecendo
o pobre, nem comprazendo ao grande; com justiça (צדקה ts
̂edaqah) julgarás (שפט shaphat) o teu próximo”.[4] Isto claramente deve significar que a imparcialidade no
julgamento só pode ser garantida onde prevalece a justiça. Nenhum réu no
tribunal, ainda que seja um pobre, cuja condição de miséria inspire compaixão,
deve ser privilegiado no julgamento. A lei divina promulga que tanto o rico
quanto o pobre estão em pé de igualdade; e, em juízo, devem ser qualificados
como sujeitos responsáveis pelos seus atos.
A terceira passagem, Dt 16.19-20, confirma o princípio da
imparcialidade no julgamento, garantindo a preservação do direito. Com mais
clareza e precisão, o texto declara: “Não
torcerás a justiça (משפט mishpat), não farás
acepção de pessoas, nem tomarás suborno; porquanto o suborno cega os olhos dos
sábios e subverte a causa dos justos (צדיק tsaddiyq). A justiça (צדקה ts ̂edaqah) seguirás,
somente a justiça (צדקה ts ̂edaqah),
para que vivas e possuas em herança a terra que te dá o Senhor, teu Deus”.
Nestes versículos, o vocábulo justiça é designado por dois termos em hebraico: mishpat e tsedeq, sendo que o primeiro (mishpat),
no versículo 19, denota, preferencialmente, o direito a ser preservado, isto é, não distorcido (pervertido), como
expressa Dt 27.19: “Maldito aquele que
perverter o direito (משפט mishpat) do estrangeiro,
do órfão e da viúva”. O segundo (tsedeq)
exprime com precisão o real sentido de justiça, ou seja, agir com retidão sem inclinações tendenciosas.
O
termo hebraico (משפט mishpat),
traduzido como direito, origina-se da
raiz verbal (שפט shaphat)
que, de acordo com os respectivos paradigmas verbais, denota: (Qal) = agir como legislador ou juiz, decidir
controvérsia; (Nifal) = entrar em controvérsia, pleitear; (Poel) = juiz,
oponente em juízo.[5]
Desta forma, mishpat, neste contexto
e em outros semelhantes, denota julgamento
ou juízo porque exprime uma ação
judicial pela qual Deus vindica a justiça
em defesa da causa de uma vítima inocente de atos de maldade cometidos por um
perverso, a fim de fazer prevalecer o direito
do justo que se vê indefeso diante do seu oponente. O mandamento divino impõe a
todos o dever de agir com retidão no
trato com o próximo. A dignidade do justo deve ser respeitada acima de tudo.
Portanto, é pela imposição do dever
de cumprir a lei que o direito se
estabelece.
No Decálogo, quando Deus proíbe matar, ele
estabelece o direito individual à vida;
quando proíbe furtar, estabelece o direito
individual à posse da propriedade, por ter sido adquirida por meio do
trabalho honesto e o desgaste da vida. Quando proíbe dar falso testemunho
contra o próximo, estabelece o direito
individual que todos têm de preservação de sua integridade moral, visando proteger a reputação do justo. Isto
ocorre porque, ao criar o homem à sua imagem e
semelhança, Deus lhe atribuiu dignidade,
compartilhando com ele seus atributos. Por esta razão, a lei divina impõe a
cada ser humano a obrigação de pautar sua conduta de forma compatível com a
conduta divina. “Sereis santos, porque
eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2).
2.
A
vindicação do direito violado
Quando
o homem viola o direito do seu próximo também viola o direito divino. Este é um fato comprovado na história de Israel. Constituído
em uma sociedade teocrática, Israel era um país regido por leis divinas. A
religião, através de seus preceitos morais estabelecidos pela tôrah, impunha um sistema de valores pelo
qual as estruturas sociais, as esferas de poder e a vida econômica eram
conduzidas. A tôrah compunha-se do Decálogo, de um Código Civil e Penal e de um Código
Litúrgico. Este conjunto de instruções, leis, preceitos morais e religiosos
serviu como a Constituição Nacional dos
hebreus.
O
Decálogo define o padrão das relações
entre o indivíduo e Deus, sua família e seu semelhante (Ex 20.1-17), porque “a
vida humana era considerada valiosa porque a raça humana foi feita à imagem de
Deus, e assim sendo, a vida se baseava no caráter de Deus”.[6] Os
direitos humanos, promulgados no decálogo,
testificam do direito que Deus tem de
que sua autoridade seja reconhecida e sua vontade soberana seja acatada, de tal
forma que a conduta da criatura humana retrate o caráter do seu Criador. O Código
Civil compreende
as leis que regulamentam o procedimento do povo quanto às questões de natureza jurídica
(Ex 21 a 24). Finalmente, o Código
Litúrgico, onde estão definidas leis que determinam o comportamento e as
obrigações religiosas do povo, regulamentava o culto a Deus, oficializado pelo
sistema sacerdotal levítico (Ex 25 a 31), responsável pela consolidação da
teocracia.
Com o estabelecimento da monarquia, séculos depois da jurisdição
de Moisés, Israel viveu o período mais tenebroso de sua história. “A monarquia
parece o conjunto de todos os males”, disse José L. Sicre.[7]
A pior de todas as crises ocorreu no século VIII, no qual foi instalado um
sistema econômico explorador e alienante, pelo qual o aparelho administrativo
se tornou o principal responsável pelas injustiças sob todos os aspectos e
níveis de gravidade. Abusos excessivos eram cometidos contra a população
carente e desprotegida. Beneficiados pelo esquema de corrupção, os magistrados
garantiam a impunidade dos gedolim
(os grandes, os poderosos, os maiorais) pelos crimes por eles praticados sob a
proteção de leis injustas (Is 10.1-2) e a custo do suborno (Am 5.12; Mq 7.3). A
concentração do patrimônio em mãos dos gedolim
era obtido por meios quase sempre desonestos e pelo uso da violência. “Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas,
as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua
herança” (Mq 2.2); ou, como disse Isaías, “ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais
lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (Is 5.8).
O estado de miséria provocado pelo sistema levou a população ao
endividamento e à miséria. Levados a julgamento, os juízes, subornados pelos
credores, sentenciavam os devedores a serem vendidos como escravos para que a
dívida, até mesmo de um par de sandálias, fosse paga: “Porque vendem o justo por dinheiro e o necessitado por um par de
sandálias” (Am 2.6). Confrontando os poderosos, Amós declarou que eles “pervertem o caminho dos mansos” (Am
2.7); e, lançando em rosto seus crimes, denunciou: “esmagais os necessitados” (Am 4.1). Isto retrata o desprezo com
que os poderosos tratavam os fracos e indefesos, violando e negando
criminosamente seus direitos.
Os oráculos de Isaías
registram que os legisladores prescreviam “leis
de opressão, para negarem justiça aos pobres, para arrebatarem o direito
aos aflitos do meu povo, a fim de despojarem as viúvas e roubarem os órfãos!” (Is 10.1-2). Miquéias revela que os componentes da máquina
administrativa estatal (governantes, juízes, sacerdotes e profetas) montaram um
forte esquema de corrupção tal que, para alimentar a ganância, agiam de forma
inescrupulosa: “Os seus cabeças dão as
sentenças por suborno, os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus
profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao Senhor, dizendo: Não
está o Senhor no meio de nós? Nenhum mal nos sobrevirá” (Mq 3.11). “As suas mãos estão sobre o mal e o fazem
diligentemente; o príncipe exige condenação, o juiz aceita suborno, o grande
fala dos maus desejos de sua alma, e, assim, todos eles juntamente urdem a
trama” (Mq 7:3).
3.
O direito de Deus conculcado
O capítulo 58 de Isaías
expressa o repúdio divino pelo falso culto, próprio de uma religião sem
compromisso: “Clama a plenos pulmões, não te detenhas, ergue a voz como a trombeta e
anuncia ao meu povo a sua transgressão e à casa de Jacó, os seus pecados. Mesmo neste estado,
ainda me procuram dia a dia; têm prazer em saber os meus caminhos; como povo
que pratica a justiça e não deixa o
direito do seu Deus” (Is 58.1-2). Esta
passagem suscita uma questão: Em que consiste o direito (jpvm mishpat) de Deus? O
Antigo Testamento, em toda a sua abrangência, sugere que o direito de Deus se
expressa por meio do que Deus vindica para si mesmo: sua própria glória, a
posse da criação e a obediência à sua lei.
A glória de Deus reside no
seu santo caráter e no seu santo nome Yahweh.
Deus é digno de que seu nome seja honrado. “Salmodiai
a glória do seu nome” (Sl 66.1); “Não
a nós, Yahweh, não a nós, mas ao teu nome dá glória” (Sl 115.1); “Tributai a Yahweh a glória devida ao seu
nome” (1Cr 16.29; Sl 96.8). Estas são expressões de louvor dos adoradores
que reconhecem a dignidade de Deus e honram o seu nome. Em Isaías, por duas
vezes, Deus vindica sua dignidade ferida pelo pecado da idolatria cometido pelo
seu povo através do culto aos deuses cananeus: “Eu sou o SENHOR (hwhy Yahweh), este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a
minha honra, às imagens de escultura” (Is 42:8). “Por amor de mim, por amor de
mim, é que faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória,
não a dou a outrem” (Is 48:11). Porque seu nome é Yahweh, Deus tem o direito a
que seu nome seja honrado. Invocar Baal ou outro deus qualquer, mais que
profanação, é agressão brutal e infame ao caráter divino; é calcar aos pés a
dignidade e a honra do “Santo de Israel”.
Outrossim, Deus vindica para
si o direito de posse sobre tudo que
existe: “Agora, pois, se
diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre
todos os povos, porque toda a terra é minha” (Ex 19.5). “A Yahweh pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e
os que nele habitam” declara o salmista sob a
inspiração do próprio Deus (Sl 24.1). Todas as coisas, no céu e na terra, lhe
pertencem por direito de criação (cf Ex
19.5; Is 45.12, 18), por direito de
preservação (cf Is 46.3-4; Sl 36.6; Ne 9.6) e por direito de redenção (cf Is 43.1; 49.26).
Finalmente, Deus vindica
para si o direito a que sua lei seja
obedecida. A tôrah é o testamento
da aliança de Deus com o seu povo. Em sua aliança com Abraão, Deus prometeu
gerar uma “grande nação” por meio da
qual “todas as famílias da terra” haverão
de ser abençoadas (Gn 12.1-3). A tôrah foi
promulgada com o fim de habilitar Israel para o cumprimento do propósito divino
no mundo. Os “mandamentos, estatutos e
juízos” (Dt 6.1) constituíam o conjunto de instruções e normas que haveriam
de reger a vida nacional dos hebreus que, no Sinai, lhe prometeu obediência.
Portanto, Deus tem o mérito de vindicar o direito
a que sua lei seja obedecida.
Conclusão
Alicerçado nos Estatutos da Aliança, promulgados por Yahweh ao seu povo Israel, o direito e a justiça estão atrelados de tal forma que cada um existe em função
do outro. As instruções, leis e normas éticas, prescritas na tôrah, estabelecem que o padrão de
relações de cada indivíduo com seu próximo fundamenta-se no padrão de relações
do homem com Deus. O sistema através do qual a ordem social é instaurada emana das prescrições da lei divina. A
vida do povo de Deus há de ser regida pelos princípios do direito e da justiça. Ao direito corresponde o dever imposto pela lei divina de que a justiça, e somente a justiça, seja o parâmetro pelo qual a
conduta humana deva ser medida. Criado à imagem e semelhança do Criador, o
homem é um ser pessoal dotado de livre-arbítrio e, por esta razão, responde
perante Deus como sujeito responsável pelos seus atos. O Supremo Legislador e
Juiz do Universo é o único que realmente detém o mérito do direito que concede ao homem e que também reivindica do homem: direito a que Seu nome seja honrado, direito
de posse da criação e o direito a que sua lei seja obedecida.
[1] EICHRODT,
Walther. Teologia do antigo testamento.
São Paulo: Hagnos, 2004, p. 59.
[2] EICHRODT,
Walther. Op. Cit.,
p. 59.
[3] EICHRODT,
Walther. Op.
Cit., p. 63.
[4]SOCIEDADE BÍBLICA
DO BRASIL. (1999; 2005). Biblioteca digital da bíblia, Léxico Hebraico e Grego de Strong.
[5] SOCIEDADE
BÍBLICA DO BRASIL. Biblioteca digital da
bíblia. Léxico Hebraico e Grego de Strong
[6] KAISER JR.,
Walter. Teologia do antigo testamento.
São Paulo: Vida Nova, 1996, p. 120.
[7] SICRE, José L.. A justiça social nos profetas. São
Paulo: Paulinas, 1990, p. 81.