15 de abril de 2014

O DIREITO DE DEUS


Pr. José Vidigal Queirós

Introdução

O tema ora abordado flui dos Estatutos da Aliança que, segundo o Antigo Testamento, definem o aspecto legal da vida sob a autoridade de Deus. Isto pressupõe o estabelecimento de um sistema através do qual a ordem social, na vida do povo de Deus, deveria ser regida por dois princípios: o direito e a justiça. Ao direito correspondia o dever, tanto individual como coletivo, do povo de Deus reger sua vida, segundo o princípio da justiça. Para tanto, a lei divina demarcava os limites e estabelecia os princípios pelos quais a natureza espiritual e moral do homem haveria de ser moldada, para conformar-se aos aspectos descritivos da natureza do ser de Deus.

O referencial bíblico que embasa este estudo encontra-se em duas passagens da profecia vetero-testamentária: Isaías 58.1-2 e Jeremias 5.4-5. Em ambos os textos, os profetas denunciam com ênfase o desprezo que Israel demonstrou pelo “direito do seu Deus”. Antes de tudo, é necessário frisar que o objetivo aqui não consiste numa exposição exegética do significado do termo direito de Deus encontrado nestas passagens bíblicas, mas em apresentar uma concepção teológica plausível do direito como o elemento designativo da dignidade divina que, pela jurisprudência do próprio Deus, é estendida também a cada ser humano que compartilha com o seu Criador os mesmos atributos.



1.      Direito e justiça, segundo a Tôrah

O termo direito está atrelado ao princípio fundamental da justiça, prescrito pela lei divina. Eichrodt, ao referir-se ao tema bíblico do direito no contexto da legislação mosaica, declara que “se perguntarmos pela natureza singular do direito mosaico, comparando-o com o de outros povos antigos, a primeira coisa que se há de destacar é a ênfase com que todo direito se refere a Deus. Todo o direito, e não somente o cultual, aparece como uma exigência direta de Deus; violá-lo é um sacrilégio contra Yahweh”.[1] Neste sentido, o direito, no contexto da Antiga Aliança, é instituído e sustentado por Deus através dos seus “mandamentos, estatutos e juízos”, prescritos na Tôrah.

Distinto do Código de Hamurabi, que se “autodenomina obra do próprio rei”, opina Eichrodt, “em Israel, ao contrário, a conexão entre religião, lei e moral está mais viva; todo atentado contra a lei é entendido como um pecado contra Deus; o legislador divino é quem tem a palavra em todo momento; a obra do legislador humano fica pulverizada após ele”.[2] A legislação divina, promulgada a Israel pela mediação de Moisés, demonstra a superioridade da vida humana diante de todas as coisas. Ela mostra um profundo sentido de justiça; “sua explicação não pode se achar em outra coisa que não seja o conhecimento de um Deus que criou o homem à sua imagem e que por isso, ainda quando este se torna digno, o defende em sua dignidade humana e respeita o seu direito à vida”.[3]

A concepção teológica de direito requer um exame das Escrituras, onde os termos usados na linguagem jurídica vetero-testamentária expressam a vontade de Deus para com o seu povo eleito. Inicialmente, três passagens bíblicas serão consultadas. A primeira é Ex 23.6: Não perverterás o direito (משפט mishpat) do teu pobre na sua demanda. Guarda-te de acusares falsamente, e não matarás o inocente e justo (צדיק tsaddiyq); porque não justificarei (צדק tsadaq) o ímpio.

O imperativo divino – “não perverterás o direito do teu pobre” – denota a proibição de qualquer ato que viole o direito (משפט mishpat) instituído por Deus em sua lei, pois isto fere a dignidade humana. A condição de pobreza não se constitui num status social que inferioriza o ser humano, considerando-o digno de menosprezo, isto é, destituindo-o do valor que ele tem e da dignidade que a lei divina lhe atribui. Sentenciar à morte um justo (צדיק tsaddiyq) por ser pobre constitui-se num ato de perversidade. Até mesmo uma falsa acusação é reputada como intolerável e, por esta razão, Deus jamais justificará o perverso.

Na segunda passagem, Lv 19.15, a lei divina estabelece o princípio da imparcialidade no julgamento: Não farás injustiça (עול ̀avel) no juízo (משפט mishpat), nem favorecendo o pobre, nem comprazendo ao grande; com justiça (צדקה ts ̂edaqah) julgarás (שפט shaphat) o teu próximo”.[4] Isto claramente deve significar que a imparcialidade no julgamento só pode ser garantida onde prevalece a justiça. Nenhum réu no tribunal, ainda que seja um pobre, cuja condição de miséria inspire compaixão, deve ser privilegiado no julgamento. A lei divina promulga que tanto o rico quanto o pobre estão em pé de igualdade; e, em juízo, devem ser qualificados como sujeitos responsáveis pelos seus atos.

A terceira passagem, Dt 16.19-20, confirma o princípio da imparcialidade no julgamento, garantindo a preservação do direito. Com mais clareza e precisão, o texto declara: “Não torcerás a justiça (משפט mishpat), não farás acepção de pessoas, nem tomarás suborno; porquanto o suborno cega os olhos dos sábios e subverte a causa dos justos (צדיק tsaddiyq). A justiça (צדקה ts ̂edaqah) seguirás, somente a justiça (צדקה ts ̂edaqah), para que vivas e possuas em herança a terra que te dá o Senhor, teu Deus”.

Nestes versículos, o vocábulo justiça é designado por dois termos em hebraico: mishpat e tsedeq, sendo que o primeiro (mishpat), no versículo 19, denota, preferencialmente, o direito a ser preservado, isto é, não distorcido (pervertido), como expressa Dt 27.19: “Maldito aquele que perverter o direito (משפט mishpat) do estrangeiro, do órfão e da viúva”. O segundo (tsedeq) exprime com precisão o real sentido de justiça, ou seja, agir com retidão sem inclinações tendenciosas.

O termo hebraico (משפט mishpat), traduzido como direito, origina-se da raiz verbal (שפט shaphat) que, de acordo com os respectivos paradigmas verbais, denota: (Qal) = agir como legislador ou juiz, decidir controvérsia; (Nifal) = entrar em controvérsia, pleitear; (Poel) = juiz, oponente em juízo.[5] Desta forma, mishpat, neste contexto e em outros semelhantes, denota julgamento ou juízo porque exprime uma ação judicial pela qual Deus vindica a justiça em defesa da causa de uma vítima inocente de atos de maldade cometidos por um perverso, a fim de fazer prevalecer o direito do justo que se vê indefeso diante do seu oponente. O mandamento divino impõe a todos o dever de agir com retidão no trato com o próximo. A dignidade do justo deve ser respeitada acima de tudo. Portanto, é pela imposição do dever de cumprir a lei que o direito se estabelece.

No Decálogo, quando Deus proíbe matar, ele estabelece o direito individual à vida; quando proíbe furtar, estabelece o direito individual à posse da propriedade, por ter sido adquirida por meio do trabalho honesto e o desgaste da vida. Quando proíbe dar falso testemunho contra o próximo, estabelece o direito individual que todos têm de preservação de sua integridade moral, visando proteger a reputação do justo. Isto ocorre porque, ao criar o homem à sua imagem e semelhança, Deus lhe atribuiu dignidade, compartilhando com ele seus atributos. Por esta razão, a lei divina impõe a cada ser humano a obrigação de pautar sua conduta de forma compatível com a conduta divina. “Sereis santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2).



 2.      A vindicação do direito violado

Quando o homem viola o direito do seu próximo também viola o direito divino. Este é um fato comprovado na história de Israel. Constituído em uma sociedade teocrática, Israel era um país regido por leis divinas. A religião, através de seus preceitos morais estabelecidos pela tôrah, impunha um sistema de valores pelo qual as estruturas sociais, as esferas de poder e a vida econômica eram conduzidas. A tôrah compunha-se do Decálogo, de um Código Civil e Penal e de um Código Litúrgico. Este conjunto de instruções, leis, preceitos morais e religiosos serviu como a Constituição Nacional dos hebreus.

O Decálogo define o padrão das relações entre o indivíduo e Deus, sua família e seu semelhante (Ex 20.1-17), porque “a vida humana era considerada valiosa porque a raça humana foi feita à imagem de Deus, e assim sendo, a vida se baseava no caráter de Deus”.[6] Os direitos humanos, promulgados no decálogo, testificam do direito que Deus tem de que sua autoridade seja reconhecida e sua vontade soberana seja acatada, de tal forma que a conduta da criatura humana retrate o caráter do seu Criador. O Código Civil compreende as leis que regulamentam o procedimento do povo quanto às questões de natureza jurídica (Ex 21 a 24). Finalmente, o Código Litúrgico, onde estão definidas leis que determinam o comportamento e as obrigações religiosas do povo, regulamentava o culto a Deus, oficializado pelo sistema sacerdotal levítico (Ex 25 a 31), responsável pela consolidação da teocracia.

Com o estabelecimento da monarquia, séculos depois da jurisdição de Moisés, Israel viveu o período mais tenebroso de sua história. “A monarquia parece o conjunto de todos os males”, disse José L. Sicre.[7] A pior de todas as crises ocorreu no século VIII, no qual foi instalado um sistema econômico explorador e alienante, pelo qual o aparelho administrativo se tornou o principal responsável pelas injustiças sob todos os aspectos e níveis de gravidade. Abusos excessivos eram cometidos contra a população carente e desprotegida. Beneficiados pelo esquema de corrupção, os magistrados garantiam a impunidade dos gedolim (os grandes, os poderosos, os maiorais) pelos crimes por eles praticados sob a proteção de leis injustas (Is 10.1-2) e a custo do suborno (Am 5.12; Mq 7.3). A concentração do patrimônio em mãos dos gedolim era obtido por meios quase sempre desonestos e pelo uso da violência. “Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas, as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança” (Mq 2.2); ou, como disse Isaías, “ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (Is 5.8).

O estado de miséria provocado pelo sistema levou a população ao endividamento e à miséria. Levados a julgamento, os juízes, subornados pelos credores, sentenciavam os devedores a serem vendidos como escravos para que a dívida, até mesmo de um par de sandálias, fosse paga: “Porque vendem o justo por dinheiro e o necessitado por um par de sandálias” (Am 2.6). Confrontando os poderosos, Amós declarou que eles “pervertem o caminho dos mansos” (Am 2.7); e, lançando em rosto seus crimes, denunciou: “esmagais os necessitados” (Am 4.1). Isto retrata o desprezo com que os poderosos tratavam os fracos e indefesos, violando e negando criminosamente seus direitos.

Os oráculos de Isaías registram que os legisladores prescreviam “leis de opressão, para negarem justiça aos pobres, para arrebatarem o direito aos aflitos do meu povo, a fim de despojarem as viúvas e roubarem os órfãos!” (Is 10.1-2). Miquéias revela que os componentes da máquina administrativa estatal (governantes, juízes, sacerdotes e profetas) montaram um forte esquema de corrupção tal que, para alimentar a ganância, agiam de forma inescrupulosa: “Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao Senhor, dizendo: Não está o Senhor no meio de nós? Nenhum mal nos sobrevirá” (Mq 3.11). “As suas mãos estão sobre o mal e o fazem diligentemente; o príncipe exige condenação, o juiz aceita suborno, o grande fala dos maus desejos de sua alma, e, assim, todos eles juntamente urdem a trama” (Mq 7:3).


3.      O direito de Deus conculcado

O capítulo 58 de Isaías expressa o repúdio divino pelo falso culto, próprio de uma religião sem compromisso: Clama a plenos pulmões, não te detenhas, ergue a voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão e à casa de Jacó, os seus pecados. Mesmo neste estado, ainda me procuram dia a dia; têm prazer em saber os meus caminhos; como povo que pratica a justiça e não deixa o direito do seu Deus (Is 58.1-2). Esta passagem suscita uma questão: Em que consiste o direito (jpvm mishpat) de Deus? O Antigo Testamento, em toda a sua abrangência, sugere que o direito de Deus se expressa por meio do que Deus vindica para si mesmo: sua própria glória, a posse da criação e a obediência à sua lei.

A glória de Deus reside no seu santo caráter e no seu santo nome Yahweh. Deus é digno de que seu nome seja honrado. “Salmodiai a glória do seu nome” (Sl 66.1); “Não a nós, Yahweh, não a nós, mas ao teu nome dá glória” (Sl 115.1); “Tributai a Yahweh a glória devida ao seu nome” (1Cr 16.29; Sl 96.8). Estas são expressões de louvor dos adoradores que reconhecem a dignidade de Deus e honram o seu nome. Em Isaías, por duas vezes, Deus vindica sua dignidade ferida pelo pecado da idolatria cometido pelo seu povo através do culto aos deuses cananeus: “Eu sou o SENHOR (hwhy Yahweh), este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura” (Is 42:8). “Por amor de mim, por amor de mim, é que faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória, não a dou a outrem” (Is 48:11). Porque seu nome é Yahweh, Deus tem o direito a que seu nome seja honrado. Invocar Baal ou outro deus qualquer, mais que profanação, é agressão brutal e infame ao caráter divino; é calcar aos pés a dignidade e a honra do “Santo de Israel”.

Outrossim, Deus vindica para si o direito de posse sobre tudo que existe: Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha(Ex 19.5). “A Yahweh pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” declara o salmista sob a inspiração do próprio Deus (Sl 24.1). Todas as coisas, no céu e na terra, lhe pertencem por direito de criação (cf Ex 19.5; Is 45.12, 18), por direito de preservação (cf Is 46.3-4; Sl 36.6; Ne 9.6) e por direito de redenção (cf Is 43.1; 49.26).

Finalmente, Deus vindica para si o direito a que sua lei seja obedecida. A tôrah é o testamento da aliança de Deus com o seu povo. Em sua aliança com Abraão, Deus prometeu gerar uma “grande nação” por meio da qual “todas as famílias da terra” haverão de ser abençoadas (Gn 12.1-3). A tôrah foi promulgada com o fim de habilitar Israel para o cumprimento do propósito divino no mundo. Os “mandamentos, estatutos e juízos” (Dt 6.1) constituíam o conjunto de instruções e normas que haveriam de reger a vida nacional dos hebreus que, no Sinai, lhe prometeu obediência. Portanto, Deus tem o mérito de vindicar o direito a que sua lei seja obedecida.



Conclusão

Alicerçado nos Estatutos da Aliança, promulgados por Yahweh ao seu povo Israel, o direito e a justiça estão atrelados de tal forma que cada um existe em função do outro. As instruções, leis e normas éticas, prescritas na tôrah, estabelecem que o padrão de relações de cada indivíduo com seu próximo fundamenta-se no padrão de relações do homem com Deus. O sistema através do qual a ordem social é instaurada emana das prescrições da lei divina. A vida do povo de Deus há de ser regida pelos princípios do direito e da justiça. Ao direito corresponde o dever imposto pela lei divina de que a justiça, e somente a justiça, seja o parâmetro pelo qual a conduta humana deva ser medida. Criado à imagem e semelhança do Criador, o homem é um ser pessoal dotado de livre-arbítrio e, por esta razão, responde perante Deus como sujeito responsável pelos seus atos. O Supremo Legislador e Juiz do Universo é o único que realmente detém o mérito do direito que concede ao homem e que também reivindica do homem: direito a que Seu nome seja honrado, direito de posse da criação e o direito a que sua lei seja obedecida.










[1] EICHRODT, Walther. Teologia do antigo testamento. São Paulo: Hagnos, 2004, p. 59.
[2] EICHRODT, Walther. Op. Cit., p. 59.
[3] EICHRODT, Walther. Op. Cit., p. 63.
[4]SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. (1999; 2005). Biblioteca digital da bíblia, Léxico Hebraico e Grego de Strong.
[5] SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Biblioteca digital da bíblia. Léxico Hebraico e Grego de Strong
[6] KAISER JR., Walter. Teologia do antigo testamento. São Paulo: Vida Nova, 1996, p. 120.
[7] SICRE, José L.. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 81.