Introdução
A igreja, segundo a concepção do
apóstolo Paulo, é uma corporação. Não está inserida aqui a ideia de uma
organização de caráter institucional, mas de uma estrutura orgânica que tem
vida. É o corpo onde habita o “Espírito de Cristo”; é “templo, santuário e
edifício de Deus” (1Co 12.27; 1Co 3.16; 1Co 3.9). A igreja é de Deus e, em seu
nome, exerce no mundo uma missão.
O Deus
que “está
em todos
e age por meio
de todos ” (Ef 4.6) é o único sujeito da missão
e a igreja , como
agência executora de Sua vontade soberana , age no
mundo , visando o alcance
do Seu propósito
para com a humanidade , segundo
o Seu eterno
desígnio para
com toda
a criação .
1. A
eleição e a vocação universal da igreja
A igreja
tem suas raízes na “qahal” judaica . Israel, como
povo da aliança ,
era o povo
eleito para o serviço
sacerdotal no mundo das nações . Em sua aliança com Abraão, Deus
prometeu que , por
meio de sua
descendência , todas as famílias da terra haveriam
de ser abençoadas (Gn 12.3; cf. Gn
28.14).
Na aliança
do Sinai, Israel é designado como “reino de sacerdotes ”
e “nação santa ”
(Ex 19.6), assumindo uma posição de mediação
na relação entre
Deus e as nações
gentílicas. O apóstolo Paulo, no capítulo 3 de sua
Epístola aos Gálatas, reconhece que a promessa a Abraão
cumpre-se na igreja , na qual estão os verdadeiros filhos
de Abraão, segundo a fé (v.7); e vê
todas as nações gentílicas como herdeiras da bênção universal (vv. 8-9). Desta forma ,
a igreja , mais
que uma simples
continuação , é a legítima
substituta de Israel no plano salvífico e universal
divino (cf. 1Pe 2.9-10). A eleição
de Israel, que se consolida na igreja , tem como
função o serviço
entre as nações .
A missão da igreja ,
como expressa
Carriker, consiste em “proclamar
os atos universais
de Deus para
o mundo . A eleição
é para um
relacionamento particular com Deus , para o mundo , não fora dele”.[1]
1.1. A
universalidade da missão
“Por
universalidade entendemos o alcance da obra de Cristo como provisão para todo o mundo , e a amplitude
da oferta salvadora que
não faz acepção
de pessoas ”.[2] Há
uma continuidade do Antigo Testamento e o Novo Testamento no que
concerne à universalidade do propósito salvífico de Deus . As bênçãos
messiânicas, antes prometidas, agora têm cumprimento na pessoa e obra de
Jesus Cristo em
favor do mundo (Jo 3.17; 12.47).
O cântico
de Simeão anuncia profeticamente a universalidade da obra
de Jesus Cristo nos
seguintes termos :
“... os meus olhos
já viram a tua salvação, a qual preparaste diante
de todos os povos :
luz para revelação aos gentios
e para a glória
de teu povo
de Israel” (Lc 2.30-32).
A universalidade da salvação e do
evangelho do reino
são esteios
da missão universal .
A universalidade do plano divino
foi de uma forma magistral ,
delineada pelo apóstolo
Paulo, em Cl 1.15-20 e Ef 1.3-23. Deus é o Soberano
Absoluto como
Criador , o Senhor
da história e o autor
da salvação. Cristo , o enviado de Deus ,
é, antes de tudo ,
“a imagem do Deus
invisível e o primogênito
de toda a criação ”
(Cl 1.15).
Tudo concorre para
a plenitude : o mundo
todo (Cl 1.6), toda
a criação sob
o céu (Cl 1.23), cada
homem (Cl 1.28). Toda a criação veio a existir para ser
sua possessão
(Cl 1.16). Ele é o sustentáculo
de todo o universo
(Cl 1.17), tem a primazia sobre todas as coisas
(Cl 1.18) e nele reside toda a plenitude (Cl 1.19).
Soberano sobre
todas as coisas , Cristo
e a igreja , como
cabeça e corpo ,
formam um todo ,
pois a igreja
é “a plenitude daquele que a tudo
enche em todas coisas ”
(Ef 1.23). A igreja reconhece a intenção divina
de “fazer convergir nele,
na dispensação da plenitude dos tempos , todas as coisas ,
tanto as do céu
como as da terra ”
(Ef 1.10).
1.2.
A necessidade universal do evangelho
A universalidade da queda , atingindo toda
a raça (Rm 3.23; 5.12) e toda
a natureza (Rm 8.21), define a necessidade universal da
salvação. O evangelho é apresentado no kerigma Paulino como
“poder de Deus
para a salvação de todo
aquele que
crê” tanto de judeus
como de gentios
(Rm 1.16). Neste estado , como diz Karl Muller, a justiça
e a santidade de Deus
fazem frente a uma decadência
generalizada da raça humana .[3] A necessidade de salvação é suprida pelo
amor e pela
graça divina manifesta a todo o mundo
(Rm 11.32; Tt 2.11).
A boa-nova que
está radicalizada no amor de Deus Pai se
manifestou no sacrifício da morte do Filho . Mas sem fé não há
salvação e tal fé
é dom de Deus
e depende da pregação tão necessária para que o mundo conheça a Deus .
Deste conhecimento dependerá a salvação
de “todo aquele
que invocar o
nome do Senhor ”
(Rm 10.11). Mas “como ,
porém , invocarão aquele
em que
não creram? E como
crerão naquele de que nada ouviram? E como
ouvirão se não há quem
pregue? E como pregarão se não forem enviados ?”
(Rm 10.14). Assim sendo, a salvação e o evangelho , em sua dimensão universal , caracterizam a eleição
e a vocação universal
da igreja .
2. A missão
de Jesus como padrão para a missão da igreja
A oração
sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo ,
também eu
os enviei ao mundo ” (Jo 17.18); e o comissionamento
dos discípulos : “Assim
como o Pai
me enviou, eu
também vos
envio” (Jo 20.21) estabelecem o elo entre a missão
de Jesus e a missão da igreja . Estas palavras
de Jesus em referência
aos Seus discípulos
revelam substancialmente três verdades fundamentais .
A primeira
é que Deus é o sujeito da missão .
Sua missão
consiste na restauração de toda a criação
(o homem e o universo )
atingida fatalmente pelo
pecado e subjugada às hostes do mal .
A execução de sua
missão ocorre pelo
envio de seu Filho
Unigênito . Deus
Pai o enviou como
homem : Adão, novo
Adão (Sl 8; Hebreus 2); como o “Filho
do Homem ” (cf. Daniel 7.14) e como o servo
sofredor (cf. Isaías 53).
A segunda
verdade oriunda
das palavras de Jesus, em Jo 20.21, é que
a missão
da igreja fundamenta-se na autoridade soberana
de Deus e de Cristo .
Ao ser exaltado à destra
do Pai , o Filho
de Deus se torna
o Soberano Árbitro
do Mundo (cf. Mt 28.18). O mundo , após a glorificação de Cristo ,
passa a ter um Novo Chefe
que envia sua
igreja como
serva ao mundo ;
o mesmo mundo
que o Pai
ama com
amor imensurável
(Jo 3.16).
A terceira
verdade é que
o ministério
da igreja deve estar
pautado no ministério de Jesus. As causas e o propósito da missão de Cristo
e da igreja são
respectivamente iguais .
Por conseguinte ,
a missão de Jesus é padrão
e modelo para a missão da igreja .
Isto quer
dizer que cada cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi
o apóstolo do Pai .
2.1. O tríplice ofício
O apostolado
de Cristo foi transferido para
a igreja . Cristo
é o referencial para seus
discípulos , “pois basta
ao discípulo ser
como seu
mestre e ao servo
como o seu
senhor ” (Mt 10.25). Uma vez
que a missão
de Jesus tomou forma e concretude em seu tríplice ofício
de profeta , sacerdote e rei ,
a missão da igreja
também o será. Segundo
Charles Van Engen, “se a igreja se perceber
continuadora do ministério de Cristo no mundo ,
ela o fará em
relação à função
tríplice de Cristo ”.[4]
A igreja
é uma comunidade messiânica que
assume seu ofício
profético ao exercer sua
tarefa proclamadora do evangelho do reino . Ao agir como a comunidade
mediadora, ministrando os serviços
do culto e levando o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela
o faz por meio
de seu ofício
sacerdotal. Por ter
recebido as “chaves do reino dos céus ”
e promover em
nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e
Deus , a igreja
é nomeada como a “embaixada ”
do reino de Cristo
no mundo (2Co 5.19-20) para
exercer seu
ofício real
– reino sacerdotal (2Pe 2.9) –
executando as obras da realeza divina
designadas por Cristo .
Citado por Van
Engen, Colin Williams declara: “Pode-se ver
com facilidade
que esses
três ofícios
estão intimamente relacionados às marcas
da igreja na tradição
da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores ], onde
a Palavra é verdadeiramente pregada (profeta ), os sacramentos
são divinamente
ministrados (sacerdote ) e a santa
disciplina é mantida (rei )”.[5]
Para que
a missão da igreja
seja pautada pela missão
de Jesus é necessário que
cada cristão
tenha sua vida
modela por
Jesus. O Novo Testamento
define o padrão de vida
cristã com base
na personalidade de Cristo .
Desta forma , todo
cristão teoricamente “tem” a mente de Cristo
(1Co 2.6), e, conseqüentemente , deve pensar nas "coisas
lá do alto "
(Cl 3.2). Sua conduta
e forma de pensar jamais devem estar em conformidade
com os padrões
deste século (Rm 12.1-2).
O que
se deduz desse tríplice ofício apostólico da igreja
é que a ela ,
por meio
de sua voz
e ação profética, clama por
justiça e a põe em
prática na sua
comunidade . Por
meio de sua
ação sacerdotal, marca
sua presença sacramental e reconciliadora, em
seu contexto
social , onde
as pessoas a encaram como a comunidade
mediadora da graça divina
por vê-la oferecer-lhes a salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo
que nela habita. Finalmente ,
por meio
de seu ofício
régio , a igreja
assume a incumbência de implementar
e preservar os valores
do reino de Deus
na cultura , em
todas as instâncias do poder
e das relações humanas.
Para que
a igreja seja bem
sucedida no fiel cumprimento
de sua missão externa ,
ela precisa
de pessoas treinadas, isto é, moral , intelectual e espiritualmente
habilitadas. Tal obra
será realizada pela igreja
no exercício de sua
missão interna .
Para tanto , o
Senhor provê para a igreja “uns para apóstolos , outros para profetas , outros
para evangelistas
e outros para
pastores e mestres ,
com vistas
ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço , para a edificação do corpo de Cristo ,
até que
todos cheguemos à unidade
da fé e do pleno
conhecimento do Filho
de Deus , à perfeita
varonilidade, à medida da estatura da plenitude
de Cristo " (Ef 4.11-13).
Manfred Grellert aponta cinco aspectos que identificam o ministério
de Jesus e que servem para
modelar o ministério
da igreja : um
compromisso absoluto
com a vontade
do Pai , uma comunhão
intensa e sistemática
com o Pai ,
um estilo
de vida marcado pelo
serviço , uma preocupação
com todos
os homens e com
o homem todo
e um treinamento sistemático
de líderes para
sua obra .[6]
2.2. O mundo , campo da
missão
O destino
do Filho de Deus
foi o mundo de Deus :
“Assim como
tu me
enviaste ao mundo , também
eu os enviei ao mundo ”
(Jo 17.18). O Cristo preexistente e encarnado no homem
Jesus veio ao mundo
dos homens , não
ao mundo ideal ,
mas ao mundo
tal como
ele é. Jesus enviou sua
igreja “como
ele foi enviado ”
ao mundo geográfico
da história , o mundo
que , por
causa do pecado
e a influência das hostes
do mal , tornou-se hostil
a Deus . “Deus
estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo ” (2Co 5.19) e entregou à sua
igreja o “ministério
da reconciliação” (2Co 5.18).
Deus criou o homem
para que o homem vivesse com
Deus ; mas ,
ao pecar , o homem
perdeu o direito à vida
com Deus
e, condenado à morte , vive no mundo
sem Deus .
Com a intenção
de salvá-lo, o próprio Deus
se tornou homem e realizou uma missão no mundo .
Segundo Mt 9.35, Cristo ,
no exercício de sua
missão , realizou três
tarefas fundamentais :
proclamação – “pregando o evangelho do reino ”;
discipulado – “ensinando nas sinagogas ”; serviço – “curando toda
sorte de doenças
e enfermidades ”. Sua
motivação residia em sua compaixão
ao “ver as multidões
[...] aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor ” (Mt 9.36).
As necessidades
humanas, das quais as maiores vítimas
eram os pobres e os oprimidos ,
foram o motivo principal
para que Jesus
encarnasse o espírito e o papel
do Ebed Yahweh (Servo
de Javé ). A igreja
de Jesus é uma igreja serva . Como
disse Pedro Arana, “A igreja , assim como o Senhor Jesus, deve ser
uma igreja do caminho
e não do balcão .
Ela não
pode permanecer como
espectadora da história : tem de descer para onde
se travam as lutas reais
dos homens . Ali
se encontram as necessidades , que são o
chamado premente da igreja
para que
possa cumprir sua
missão”.[7]
O mundo
é o campo missionário
de Cristo e da igreja . Isto
se torna bem claro na interpretação
que Jesus deu respectivamente
à parábola do semeador
e à parábola do joio
e do trigo . “O campo é o mundo ;
a boa semente são
os filhos do reino ;
o joio são
os filhos do maligno ;
o inimigo que
o semeou é o diabo ; a ceifa
é a consumação do século ,
e os ceifeiros são os anjos ” (Mt 13.38-39). Nesta parábola ,
Jesus descreve o aspecto escatológico do reino , revelando que ,
na consumação dos séculos ,
os frutos da semeadura
missionária haverão de ser colhidos. O mundo
é simultaneamente campo da missão
e campo da disputa ,
onde , no final
de tudo , a humanidade
estará dividida em duas partes : os filhos
do reino e os filhos
do maligno .
[1] Timóteo
CARRIKER. Missão integral :
uma teologia bíblica, p. 57.
[2] Emílio
A. NÚÑES. Teologia
y mision: perspectivas desde América Latina ,
p.101.
[3] Karl
MÜLLER. Teologia
da missão , p. 63.
[4] Charles VAN ENGEN, Povo missionário , povo de Deus , p.
105.
[5] Ibdem,
p. 159.
[6] Manfred
GRELLERT, Os Compromissos
da missão , pp. 47, 48.
[7] Pedro
ARANA, citado por Valdir Steuernagel em A serviço do reino ,
p. 86.