Pr. José Vidigal Queirós
Introdução
Conhecer os atributos morais de
Deus requer que se busque nas Escrituras a resposta à seguinte questão: Como Deus age? Ou ainda, como ele se
comporta? A priori, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que Deus age com
bondade, santidade e justiça. Os atos e atitudes de Deus são
manifestações de seu caráter. Portanto, seus atributos morais regem a conduta
divina. Os princípios éticos sobre os quais Deus pauta a sua conduta estão
alicerçados nestes três atributos. Eis a razão pela qual Emil Brunner, um
teólogo suíço, define ética cristã como sendo “a ciência da conduta humana
determinada pela conduta de Deus”[1].
Quando Jesus exortou seus discípulos a serem perfeitos como “vosso Pai
celestial é perfeito” (Mt 5.48), ele ratificou a premissa de que sendo o homem
criado à imagem e semelhança de Deus, a conduta humana haverá de ser uma
expressão exata do comportamento divino. Então, como Deus se comporta?
1. Deus
age com Bondade
As Sagradas Escrituras descrevem
a bondade divina através do uso de diversos termos: benevolência, graça,
misericórdia e longanimidade. A infinita bondade inerente ao caráter divino
define o tipo de relação que ele tem com a criação. Toda a criação é vista na
Escritura como uma boa obra de Deus, tendo ela alcançado o padrão de qualidade
que ele desejou. “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn
1.31). Sendo Deus infinitamente bom em si mesmo, é também infinitamente benigno
e benevolente para com as suas criaturas (Sl. 145:9, 15, 16; Mt. 5:44-45; At.
14:17). Deus possui, em grau infinito, a “chrestótes”
(termo grego traduzido como benignidade)
e “agathosyne” (termo grego que
significa bondade), que são frutos do
Espírito (Gl 5.22) reproduzidos pelo caráter do regenerado como nascido do
Espírito.
A bondade
divina é expressa de forma relevante pela sua graça. A palavra "graça" é usada algumas vezes na Bíblia
para designar simplesmente um "favor" que uma pessoa faz à outra. É a
versão hebraica de "haman" e do grego "cháris". Como
atributo divino sempre indica "favor não merecido", ou seja, a
concessão de um favor, de um dom ou de um poder aos que não têm nenhum direito ou
mérito (Rm. 5:5-10). Esta graça de Deus é fonte de todas as bênçãos celestiais
desde a mensagem que semeou a Palavra Salvífica em nossos corações até a
glorificação final nos céus, de tal maneira que a nossa vida espiritual
presente e futura depende unicamente desta graça de Deus (At. 14:3; Rm. 3:24;
2Co. 8:9; Ef. 2:8-9; 2Ts. 2:16; Tt. 2:11; 3:7).
Sendo
também outra manifestação da bondade de Deus, a misericórdia se diferencia da graça – favor não merecido – porque
ela se baseia não na culpa, mas na "miséria" do homem caído. O termo
"misericórdia" ocorre muito no Velho Testamento. O binômio
"misericórdia e verdade" (em hebraico, "hesed-hemet") é
frequente (Gn. 24:49; 32:10; 2Sm. 2:6; Sl. 40:10; 89:14; Pv. 3:3) às vezes,
aparece unido com "fidelidade" (em hebraico, "emuah"). Esse
binômio caracteriza ou dá o sentido de "salvação" equivalente a
"graça e verdade" de Jo. 1:14.
No que se
refere à longanimidade de Deus, dois vocábulos gregos são usados no Novo
Testamento:
a) Hipomoné – que denota a capacidade de aguentar
o sofrimento, isto é, de perseverar sob o peso da adversidade, como indica sua
etimologia. Neste sentido, este termo aparece em Hb 10.36, cujo contexto
culmina na definição de fé em Hb 11.1, para indicar que a paciência produz esperança.
b) Macrothymia – que significa a grandeza de ânimo para superar as contrariedades e ofensas que
outras pessoas lançam sobre nós. Neste sentido, Paulo exorta aos crentes de
Éfeso a “suportarem uns aos outros” (Ef 4.2) com algo mais que a simples
paciência, isto é, com longanimidade.
A Bíblia nos deixa claro que
Deus, por seu caráter bondoso, é “tardio em irar-se” (Ex 34.6; Sl 89.15). O
mesmo é exigido de todo cristão, exortado por Tiago a estar predisposto a ouvir
mais e falar menos, não se deixando dominar pela ira (Tg 1.19). Em Romanos
3.25, é dito que Deus propôs, pelo sangue de Cristo, aplacar sua ira
(propiciação) para manifestar sua justiça e tolerar os pecadores a ponto de
deixá-los sem a merecida punição dos pecados anteriormente cometidos. Este
“passar por cima” dos pecados de Rm 3.25 equivale ao “não imputando aos homens
as suas transgressões” que se encontra em 2Co 5.19.
Neste último contexto, é dito
porque que Deus assim agiu: porque “ao que não conheceu pecado” (Cristo) Deus,
por nossa causa, “o fez pecado” (responsável e vítima propiciatória pelo
pecado) para que nós (os culpados) fôssemos feitos (chegássemos a ser) “justiça
de Deus” (justificados) nele, isto é, em Cristo (2Co 5.21). A longanimidade de
Deus não é, em nenhum modo, uma conivência nem indulgência com respeito ao
pecado do homem, mas aponta para o Calvário, onde o pecado do homem encontra a
sanção adequada. Deus nos perdoa o pecado e nos constitui justos, com a justiça
de Cristo, em sua santa presença (Jo. 1:29; Rm. 3:25; 2Co 5:21).
2. Deus
age com santidade
Santidade é o termo que designa a
excelência moral de Deus. Perfeita ou absoluta integridade é outra forma de
descrever a santidade do Ser de Deus, infinitamente puro e totalmente separado de
toda e qualquer contaminação resultante da imperfeição de suas criaturas. “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver
o mal e a opressão não podes contemplar” (Hc 1.13). O culto a Deus é uma
exigência de sua perfeição. Culto é um direito de Deus e um dever de toda
criatura. O salmista exclama:
a) “Os céus proclamam a glória de Deus e o
firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19.1);
b) “Todo ser
que respira louve ao Senhor” (Sl 150.6);
c) “Louvai-o todos os seus anjos; louvai-o, todas
as regiões celestes. Louvai-o sol e lua, louvai-o todas as estrelas luzentes”
(Sl 148.2-3);
d) “Vinde, adoremos e prestemo-nos; ajoelhemos
diante do Senhor que nos criou” (Sl 95.6).
A santidade de Deus é tamanha que
o autor do Apocalipse assim a descreve: “Vi
um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a
terra e o céu, e não se achou lugar para eles” (Ap 20.11). É a santidade
divina que nos faz sentir indignos. Isaías sentiu-se indigno, ínfimo,
insignificante e imundo diante do “Senhor dos Exércitos” a ponto de esperar ser
fulminado imediatamente - “ai de mim!
Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de
impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is
6.1-5).
Ser santo, em hebraico, é expresso
com o verbo qadash, donde procede o
termo qadosh que significa
"santidade". A ideia bíblica de santidade, tanto em hebraico como em
grego hagios, comporta uma
"separação". Esta separação tem um aspecto positivo de
"elevação" no ser e na conduta e outro negativo de "alienação do
mal", ou seja, de encontrar-se em estado de pureza. Se pudéssemos definir
Deus por meio de algum atributo, sem dúvida, o de Santo o definiria.
Poderíamos definir a santidade de
Deus como sendo uma "Bondade Majestática" (ou majestosa), isto é,
como uma "majestade infinita" pela qual o ser de Deus é inacessível
em sua perfeição absoluta, "completamente outro", totalmente livre de
impureza, mudança e limitação. Isto implica numa "Perfeita Integridade de
Caráter". Isto significa que a integridade do caráter divino não permite
que nele haja a possibilidade do mal, pois "Deus
é luz e nele não há treva nenhuma" (1Jo 1:5). A santidade divina
assume dois aspectos que a conceituam:
a) Santidade Ôntica – denota a perfeição
absoluta do ser de Deus;
b) Santidade Ética – tem a conotação de
pureza de caráter, integridade e nobreza absolutas em todas as suas ações e
palavras. Deus é o "Bem Absoluto", ou ainda o "Supremo
Bem", cujo ser e caráter são infinitamente isentos de contaminação e da
prática do mal. Sua santidade é tamanha que o homem é proibido de usar até o
seu nome em vão (Ex. 20:7; Dt. 5:11). Sua presença "santifica" o
lugar em que ele se manifesta ou no qual sua presença é reconhecida pelo homem
de quem Deus exige reverência (Ex. 3:5; Js. 5:15; Ec. 5:1a).
Deus manifesta sua santidade de
duas maneiras. A primeira, separando
para si um povo com o qual fez um pacto especial e ao qual deu uma lei, um
cerimonial e promessas. A segunda, preservando
este povo (Israel) do mal e do erro,
conduzindo-o com sua graça, seu poder e seus "corretivos
purificadores", em revelação e em ação progressivas do ritual ao ético, do
histórico ao profético, das figuras à realidade e da letra ao espírito. Este
povo santo vai concentrando-se em um remanescente e singulariza-se em Jesus
Cristo (O Santo por excelência, At. 2:27; 1Jo 2:20) em quem todos os crentes de
todas as nações são aceitos, salvos e "santificados por Deus" (1Co.
1:2; Jo. 10:36; 17:17). Toda a ética do povo de Israel está fundamentada na
intimação que "Yahweh" faz a seu povo em Lv. 19:2 – “Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso
Deus, sou santo”. “Porque sou santo”
é o termo que se constitui não só a base de nossa obrigação de nos santificar
como também a garantia de que nossa santificação é possível. O homem mortal não
pode imitar a infinita majestade de Deus, mas pode aspirar a uma pureza
tipicamente divina, mantendo-se apartado de tudo quanto possa contaminar-lhe
(1Ts 4:3-8; 1Pe. 1:14-16).
3. Deus age com justiça
Antes de tudo, precisamos
conceituar o termo justiça. Assim
como o conceito bíblico de santidade aponta sempre para uma "separação", o conceito
bíblico de justiça aponta para uma "conformidade".
Justo é aquilo que em alguém assume suas proporções e forma, conforme suas
medidas. Desta forma podemos dizer que uma roupa está "justa", quando
suas medidas são exatamente iguais às medidas do usuário. Suas medidas estão conforme as dimensões de quem a usa.
Analogamente, podemos afirmar que a
medida da justiça é a norma da lei. Desta maneira, uma pessoa só é justa na
medida em que ela cumpre a lei de Deus. Tanto em Deus como no homem, a justiça
é consequência imediata da santidade e é o fundamento de todas as demais qualidades
éticas do indivíduo. A partir do momento em que o homem imita a Deus em
santidade naturalmente ele se torna não somente um defensor, mas principalmente
um praticante fervoroso da justiça.
O conceito hebraico de justiça
determina o padrão das relações humanas. Os vocábulos צַדִּיק Tsaddiyq =
Justo e צְדָקָה Tsedaqah = Justiça falam da qualidade e
da atitude de alguém em sua relação com seu semelhante em "igualdade de
condições". Biblicamente falando, Justiça consiste, portanto, no profundo
respeito à pessoa e aos seus direitos e necessidades inalienáveis. Nas relações
humanas há três tipos de justiça: (a) Justiça
Distributiva – distribuição segundo as necessidades individuais; (b) Justiça Restitutiva – restituição
daquilo que de alguém foi tirado ou que deveria ser dado e ficou retido; (c) Justiça Retributiva – retribuição
segundo o mérito. Aqui cabem dois sentidos de retribuição: a punição e a
concessão de galardão.
Assim, portanto, questionamos: O que se entende por justiça de Deus? O conceito de justiça, para ser melhor
compreendido no sentido bíblico, é necessário que se relacione tal atributo às
qualidades do ser de Deus. O salmista diz: "Justiça e juízo são a base do
teu trono; misericórdia e verdade vão adiante do teu rosto" (Sl. 89:14).
Justiça de Deus é um atributo relacionado com a misericórdia divina e o juízo
relacionado com a verdade. Ap. 15:3 diz: "... justos e verdadeiros são os
teus caminhos, ó Rei dos séculos...". Assim sendo, Justiça pode significar o padrão moral pelo qual Deus mede a conduta e
avalia o caráter humano. Por esta razão, os homens são exortados a
praticarem a justiça e a misericórdia (Gn. 18:19; Mq 6:8). Assim como por sua
justiça Deus julga o comportamento humano também pela mesma justiça redime o
arrependido. Assim, a justiça divina tem uma conotação tanto judicial como
redentiva (Is. 45:21-22).
Todo o propósito da justiça de
Deus é revelar sua misericórdia e a sua graça salvadora. Deus satisfez sua
justiça, condenando em Cristo o pecado, o qual suportou em nosso lugar a pena
que nos estava imposta, para dar a todo homem uma chance de redenção (Rm.
3:21-26). Por outro lado, o homem, ao recusar a graça salvadora de Deus que fez
cair sobre seu Filho a condenação do pecado, atrai sobre si mesmo a justa condenação
por agredir com desprezo a pessoa do Deus Santo, Justo, Misericordioso e
Soberano. Assim, o ato da recusa humana exige de Deus um ato de sua justiça
retributiva de natureza judicial (Hb 2:1-3; Rm. 1:18, 28-32). Diante disso,
questionamos: Quais as implicações
práticas da justiça de Deus? Como resposta, Francisco Lacueva[2]
propõe o seguinte:
A justiça de Deus é simplesmente o exercício de sua
santidade na relação com a criação. A justiça divina, neste caso, combina com a
“bondade majestática” de Deus, mas não se identifica com o amor. A justiça de
Deus não pode dar lugar à mera indulgência ou à conivência. Esperar que a
misericórdia de Deus, no final, alcançará as exigências de sua justiça é o erro
que o diabo procura inculcar nos inconversos, olvidando a severa advertência de
Hb 2.2-3: “Porque se a palavra dita por
meio dos anjos foi firme, e toda transgressão e desobediência receberam JUSTA
RETRIBUIÇÃO, como escaparemos nós se negligenciarmos tão grande salvação?” A
justiça de Deus se manifesta em um Deus justo governador do mundo e que
“retribui a cada um segundo as suas obras” (Ap 22.12; cf. Ap 2.23). Por isso,
faz-se necessário distinguir em Deus: (a) Uma justiça que manifesta a retidão e
a equidade com que Deus governa o mundo, impõe suas leis e as sanciona (cf. Rm
1.32); (b) Uma justiça que remunera,
não porque o ser humano não pode exigir de Deus nenhuma retribuição nem salário
(Lc 17.10), mas porque Deus se tem comprometido com promessa de fidelidade a
dar, ao que vencer, a “coroa da justiça” (2Tm 4.8; Ap 3.11); (c) Uma justiça
que castiga aos transgressores da
lei, pois a ira de Deus pende sobre todos quantos se opõem de forma iníqua à
penetração da verdade em seus corações (Rm 1.18). Mas ainda que esta mesma
justiça conserva-se temperada pela misericórdia, posto que o Deus Santo, que é
Amor e Justiça-nossa ao mesmo tempo, sempre pune o que desmerecemos com nossos
pecados e infidelidades. Desta forma, a justiça divina está sempre pronta a
castigar o mal, mas não a premiar o bem.
Há uma tenção entre o amor e a justiça de Deus? Como Deus é o Bem
Absoluto e a excelência da perfeição e da santidade, todos os seus atributos
operam em absoluta harmonia. Nenhum atributo se contrapõe a qualquer dentre os
demais. Deus é perfeitamente íntegro. São as nossas concepções pessoais e
deduções “lógicas” oriundas de nossa estrutura cognitiva que entram em
conflito, quando refletimos sobre os atos de Deus.
Amor e justiça são atributos que
se integram de tal forma que nenhum ato de justiça tem o reconhecimento de Deus
sem que esse ato não manifeste verdadeiro amor. Por outro lado, nenhuma obra de
amor tem qualquer validade para Deus sem que a justiça seja sua verdadeira
causa. Em outras palavras, não há amor sem expressão da justiça nem justiça sem
expressão do amor. “A justiça de Deus exige que a pena do pecado seja paga. O
amor de Deus, porém, deseja que sejamos restaurados à comunhão com ele”.[3]
O sacrifício de Cristo é a expressão máxima do amor de Deus e satisfação plena
de sua justiça.
Conclusão
Deus é um ser, cuja natureza e
caráter expressam a perfeição absoluta.
Seus atributos ônticos designam tudo
que Ele é, isto é, revelam sua natureza constitutiva. Seus atributos operativos definem tudo que ele faz – as obras que realiza
em toda a sua criação. Seus atributos
morais não só descrevem o seu caráter, mas também revelam como Ele se
comporta. Sua conduta é pautada por sua bondade, santidade e justiça. Glória e
honra sejam atribuídas a Ele eternamente, amém.