27 de novembro de 2013

TEONTOLOGIA - CAPÍTULO VII - OS ATRIBUTOS MORAIS DE DEUS



Pr. José Vidigal Queirós

Introdução
Conhecer os atributos morais de Deus requer que se busque nas Escrituras a resposta à seguinte questão: Como Deus age? Ou ainda, como ele se comporta? A priori, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que Deus age com bondade, santidade e justiça. Os atos e atitudes de Deus são manifestações de seu caráter. Portanto, seus atributos morais regem a conduta divina. Os princípios éticos sobre os quais Deus pauta a sua conduta estão alicerçados nestes três atributos. Eis a razão pela qual Emil Brunner, um teólogo suíço, define ética cristã como sendo “a ciência da conduta humana determinada pela conduta de Deus”[1]. Quando Jesus exortou seus discípulos a serem perfeitos como “vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5.48), ele ratificou a premissa de que sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, a conduta humana haverá de ser uma expressão exata do comportamento divino. Então, como Deus se comporta?

1. Deus age com Bondade
As Sagradas Escrituras descrevem a bondade divina através do uso de diversos termos: benevolência, graça, misericórdia e longanimidade. A infinita bondade inerente ao caráter divino define o tipo de relação que ele tem com a criação. Toda a criação é vista na Escritura como uma boa obra de Deus, tendo ela alcançado o padrão de qualidade que ele desejou. “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1.31). Sendo Deus infinitamente bom em si mesmo, é também infinitamente benigno e benevolente para com as suas criaturas (Sl. 145:9, 15, 16; Mt. 5:44-45; At. 14:17). Deus possui, em grau infinito, a “chrestótes” (termo grego traduzido como benignidade) e “agathosyne” (termo grego que significa bondade), que são frutos do Espírito (Gl 5.22) reproduzidos pelo caráter do regenerado como nascido do Espírito.
A bondade divina é expressa de forma relevante pela sua graça. A palavra "graça" é usada algumas vezes na Bíblia para designar simplesmente um "favor" que uma pessoa faz à outra. É a versão hebraica de "haman" e do grego "cháris". Como atributo divino sempre indica "favor não merecido", ou seja, a concessão de um favor, de um dom ou de um poder aos que não têm nenhum direito ou mérito (Rm. 5:5-10). Esta graça de Deus é fonte de todas as bênçãos celestiais desde a mensagem que semeou a Palavra Salvífica em nossos corações até a glorificação final nos céus, de tal maneira que a nossa vida espiritual presente e futura depende unicamente desta graça de Deus (At. 14:3; Rm. 3:24; 2Co. 8:9; Ef. 2:8-9; 2Ts. 2:16; Tt. 2:11; 3:7).
Sendo também outra manifestação da bondade de Deus, a misericórdia se diferencia da graça – favor não merecido – porque ela se baseia não na culpa, mas na "miséria" do homem caído. O termo "misericórdia" ocorre muito no Velho Testamento. O binômio "misericórdia e verdade" (em hebraico, "hesed-hemet") é frequente (Gn. 24:49; 32:10; 2Sm. 2:6; Sl. 40:10; 89:14; Pv. 3:3) às vezes, aparece unido com "fidelidade" (em hebraico, "emuah"). Esse binômio caracteriza ou dá o sentido de "salvação" equivalente a "graça e verdade" de Jo. 1:14.
No que se refere à longanimidade de Deus, dois vocábulos gregos são usados no Novo Testamento:
a) Hipomoné – que denota a capacidade de aguentar o sofrimento, isto é, de perseverar sob o peso da adversidade, como indica sua etimologia. Neste sentido, este termo aparece em Hb 10.36, cujo contexto culmina na definição de fé em Hb 11.1, para indicar que a paciência produz esperança.
b) Macrothymia – que significa a grandeza de ânimo para superar as contrariedades e ofensas que outras pessoas lançam sobre nós. Neste sentido, Paulo exorta aos crentes de Éfeso a “suportarem uns aos outros” (Ef 4.2) com algo mais que a simples paciência, isto é, com longanimidade.

A Bíblia nos deixa claro que Deus, por seu caráter bondoso, é “tardio em irar-se” (Ex 34.6; Sl 89.15). O mesmo é exigido de todo cristão, exortado por Tiago a estar predisposto a ouvir mais e falar menos, não se deixando dominar pela ira (Tg 1.19). Em Romanos 3.25, é dito que Deus propôs, pelo sangue de Cristo, aplacar sua ira (propiciação) para manifestar sua justiça e tolerar os pecadores a ponto de deixá-los sem a merecida punição dos pecados anteriormente cometidos. Este “passar por cima” dos pecados de Rm 3.25 equivale ao “não imputando aos homens as suas transgressões” que se encontra em 2Co 5.19.
Neste último contexto, é dito porque que Deus assim agiu: porque “ao que não conheceu pecado” (Cristo) Deus, por nossa causa, “o fez pecado” (responsável e vítima propiciatória pelo pecado) para que nós (os culpados) fôssemos feitos (chegássemos a ser) “justiça de Deus” (justificados) nele, isto é, em Cristo (2Co 5.21). A longanimidade de Deus não é, em nenhum modo, uma conivência nem indulgência com respeito ao pecado do homem, mas aponta para o Calvário, onde o pecado do homem encontra a sanção adequada. Deus nos perdoa o pecado e nos constitui justos, com a justiça de Cristo, em sua santa presença (Jo. 1:29; Rm. 3:25; 2Co 5:21).

2. Deus age com santidade
Santidade é o termo que designa a excelência moral de Deus. Perfeita ou absoluta integridade é outra forma de descrever a santidade do Ser de Deus, infinitamente puro e totalmente separado de toda e qualquer contaminação resultante da imperfeição de suas criaturas. “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar” (Hc 1.13). O culto a Deus é uma exigência de sua perfeição. Culto é um direito de Deus e um dever de toda criatura. O salmista exclama:
a) “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19.1);
b) “Todo ser que respira louve ao Senhor” (Sl 150.6);
c) “Louvai-o todos os seus anjos; louvai-o, todas as regiões celestes. Louvai-o sol e lua, louvai-o todas as estrelas luzentes” (Sl 148.2-3);
d) “Vinde, adoremos e prestemo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou” (Sl 95.6).

A santidade de Deus é tamanha que o autor do Apocalipse assim a descreve: “Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles” (Ap 20.11). É a santidade divina que nos faz sentir indignos. Isaías sentiu-se indigno, ínfimo, insignificante e imundo diante do “Senhor dos Exércitos” a ponto de esperar ser fulminado imediatamente - “ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.1-5).
Ser santo, em hebraico, é expresso com o verbo qadash, donde procede o termo qadosh que significa "santidade". A ideia bíblica de santidade, tanto em hebraico como em grego hagios, comporta uma "separação". Esta separação tem um aspecto positivo de "elevação" no ser e na conduta e outro negativo de "alienação do mal", ou seja, de encontrar-se em estado de pureza. Se pudéssemos definir Deus por meio de algum atributo, sem dúvida, o de Santo o definiria.
Poderíamos definir a santidade de Deus como sendo uma "Bondade Majestática" (ou majestosa), isto é, como uma "majestade infinita" pela qual o ser de Deus é inacessível em sua perfeição absoluta, "completamente outro", totalmente livre de impureza, mudança e limitação. Isto implica numa "Perfeita Integridade de Caráter". Isto significa que a integridade do caráter divino não permite que nele haja a possibilidade do mal, pois "Deus é luz e nele não há treva nenhuma" (1Jo 1:5). A santidade divina assume dois aspectos que a conceituam:
a) Santidade Ôntica – denota a perfeição absoluta do ser de Deus;
b) Santidade Ética – tem a conotação de pureza de caráter, integridade e nobreza absolutas em todas as suas ações e palavras. Deus é o "Bem Absoluto", ou ainda o "Supremo Bem", cujo ser e caráter são infinitamente isentos de contaminação e da prática do mal. Sua santidade é tamanha que o homem é proibido de usar até o seu nome em vão (Ex. 20:7; Dt. 5:11). Sua presença "santifica" o lugar em que ele se manifesta ou no qual sua presença é reconhecida pelo homem de quem Deus exige reverência (Ex. 3:5; Js. 5:15; Ec. 5:1a).

Deus manifesta sua santidade de duas maneiras. A primeira, separando para si um povo com o qual fez um pacto especial e ao qual deu uma lei, um cerimonial e promessas. A segunda, preservando este povo (Israel) do mal e do erro, conduzindo-o com sua graça, seu poder e seus "corretivos purificadores", em revelação e em ação progressivas do ritual ao ético, do histórico ao profético, das figuras à realidade e da letra ao espírito. Este povo santo vai concentrando-se em um remanescente e singulariza-se em Jesus Cristo (O Santo por excelência, At. 2:27; 1Jo 2:20) em quem todos os crentes de todas as nações são aceitos, salvos e "santificados por Deus" (1Co. 1:2; Jo. 10:36; 17:17). Toda a ética do povo de Israel está fundamentada na intimação que "Yahweh" faz a seu povo em Lv. 19:2 – “Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. “Porque sou santo” é o termo que se constitui não só a base de nossa obrigação de nos santificar como também a garantia de que nossa santificação é possível. O homem mortal não pode imitar a infinita majestade de Deus, mas pode aspirar a uma pureza tipicamente divina, mantendo-se apartado de tudo quanto possa contaminar-lhe (1Ts 4:3-8; 1Pe. 1:14-16).

3. Deus age com justiça
Antes de tudo, precisamos conceituar o termo justiça. Assim como o conceito bíblico de santidade aponta sempre para uma "separação", o conceito bíblico de justiça aponta para uma "conformidade". Justo é aquilo que em alguém assume suas proporções e forma, conforme suas medidas. Desta forma podemos dizer que uma roupa está "justa", quando suas medidas são exatamente iguais às medidas do usuário. Suas medidas estão conforme as dimensões de quem a usa. Analogamente, podemos afirmar que a medida da justiça é a norma da lei. Desta maneira, uma pessoa só é justa na medida em que ela cumpre a lei de Deus. Tanto em Deus como no homem, a justiça é consequência imediata da santidade e é o fundamento de todas as demais qualidades éticas do indivíduo. A partir do momento em que o homem imita a Deus em santidade naturalmente ele se torna não somente um defensor, mas principalmente um praticante fervoroso da justiça.
O conceito hebraico de justiça determina o padrão das relações humanas. Os vocábulos צַדִּיק Tsaddiyq = Justo e צְדָקָה Tsedaqah = Justiça falam da qualidade e da atitude de alguém em sua relação com seu semelhante em "igualdade de condições". Biblicamente falando, Justiça consiste, portanto, no profundo respeito à pessoa e aos seus direitos e necessidades inalienáveis. Nas relações humanas há três tipos de justiça: (a) Justiça Distributiva – distribuição segundo as necessidades individuais; (b) Justiça Restitutiva – restituição daquilo que de alguém foi tirado ou que deveria ser dado e ficou retido; (c) Justiça Retributiva – retribuição segundo o mérito. Aqui cabem dois sentidos de retribuição: a punição e a concessão de galardão.
Assim, portanto, questionamos: O que se entende por justiça de Deus? O conceito de justiça, para ser melhor compreendido no sentido bíblico, é necessário que se relacione tal atributo às qualidades do ser de Deus. O salmista diz: "Justiça e juízo são a base do teu trono; misericórdia e verdade vão adiante do teu rosto" (Sl. 89:14). Justiça de Deus é um atributo relacionado com a misericórdia divina e o juízo relacionado com a verdade. Ap. 15:3 diz: "... justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos séculos...". Assim sendo, Justiça pode significar o padrão moral pelo qual Deus mede a conduta e avalia o caráter humano. Por esta razão, os homens são exortados a praticarem a justiça e a misericórdia (Gn. 18:19; Mq 6:8). Assim como por sua justiça Deus julga o comportamento humano também pela mesma justiça redime o arrependido. Assim, a justiça divina tem uma conotação tanto judicial como redentiva (Is. 45:21-22).
Todo o propósito da justiça de Deus é revelar sua misericórdia e a sua graça salvadora. Deus satisfez sua justiça, condenando em Cristo o pecado, o qual suportou em nosso lugar a pena que nos estava imposta, para dar a todo homem uma chance de redenção (Rm. 3:21-26). Por outro lado, o homem, ao recusar a graça salvadora de Deus que fez cair sobre seu Filho a condenação do pecado, atrai sobre si mesmo a justa condenação por agredir com desprezo a pessoa do Deus Santo, Justo, Misericordioso e Soberano. Assim, o ato da recusa humana exige de Deus um ato de sua justiça retributiva de natureza judicial (Hb 2:1-3; Rm. 1:18, 28-32). Diante disso, questionamos: Quais as implicações práticas da justiça de Deus? Como resposta, Francisco Lacueva[2] propõe o seguinte:
A justiça de Deus é simplesmente o exercício de sua santidade na relação com a criação. A justiça divina, neste caso, combina com a “bondade majestática” de Deus, mas não se identifica com o amor. A justiça de Deus não pode dar lugar à mera indulgência ou à conivência. Esperar que a misericórdia de Deus, no final, alcançará as exigências de sua justiça é o erro que o diabo procura inculcar nos inconversos, olvidando a severa advertência de Hb 2.2-3: “Porque se a palavra dita por meio dos anjos foi firme, e toda transgressão e desobediência receberam JUSTA RETRIBUIÇÃO, como escaparemos nós se negligenciarmos tão grande salvação?” A justiça de Deus se manifesta em um Deus justo governador do mundo e que “retribui a cada um segundo as suas obras” (Ap 22.12; cf. Ap 2.23). Por isso, faz-se necessário distinguir em Deus: (a) Uma justiça que manifesta a retidão e a equidade com que Deus governa o mundo, impõe suas leis e as sanciona (cf. Rm 1.32); (b) Uma justiça que remunera, não porque o ser humano não pode exigir de Deus nenhuma retribuição nem salário (Lc 17.10), mas porque Deus se tem comprometido com promessa de fidelidade a dar, ao que vencer, a “coroa da justiça” (2Tm 4.8; Ap 3.11); (c) Uma justiça que castiga aos transgressores da lei, pois a ira de Deus pende sobre todos quantos se opõem de forma iníqua à penetração da verdade em seus corações (Rm 1.18). Mas ainda que esta mesma justiça conserva-se temperada pela misericórdia, posto que o Deus Santo, que é Amor e Justiça-nossa ao mesmo tempo, sempre pune o que desmerecemos com nossos pecados e infidelidades. Desta forma, a justiça divina está sempre pronta a castigar o mal, mas não a premiar o bem.

Há uma tenção entre o amor e a justiça de Deus? Como Deus é o Bem Absoluto e a excelência da perfeição e da santidade, todos os seus atributos operam em absoluta harmonia. Nenhum atributo se contrapõe a qualquer dentre os demais. Deus é perfeitamente íntegro. São as nossas concepções pessoais e deduções “lógicas” oriundas de nossa estrutura cognitiva que entram em conflito, quando refletimos sobre os atos de Deus.
Amor e justiça são atributos que se integram de tal forma que nenhum ato de justiça tem o reconhecimento de Deus sem que esse ato não manifeste verdadeiro amor. Por outro lado, nenhuma obra de amor tem qualquer validade para Deus sem que a justiça seja sua verdadeira causa. Em outras palavras, não há amor sem expressão da justiça nem justiça sem expressão do amor. “A justiça de Deus exige que a pena do pecado seja paga. O amor de Deus, porém, deseja que sejamos restaurados à comunhão com ele”.[3] O sacrifício de Cristo é a expressão máxima do amor de Deus e satisfação plena de sua justiça.

Conclusão
Deus é um ser, cuja natureza e caráter expressam a perfeição absoluta. Seus atributos ônticos designam tudo que Ele é, isto é, revelam sua natureza constitutiva. Seus atributos operativos definem tudo que ele faz – as obras que realiza em toda a sua criação. Seus atributos morais não só descrevem o seu caráter, mas também revelam como Ele se comporta. Sua conduta é pautada por sua bondade, santidade e justiça. Glória e honra sejam atribuídas a Ele eternamente, amém.





[1] BRUNNER, Emil. apud da SILVA, PAULO W. Ética cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 1989, p. 11.
[2] FRANCISCO LACUEVA. op. cit. pp. 119 a 121.
[3] ERICKSON, M. Introdução à teologia sistemática, p. 126.