RESUMO
Missão Integral é o termo usado na missiologia
para designar a função da Igreja no cumprimento do desígnio dsivino que
consiste em alcançar a totalidade das etnias e cada pessoa integralmente com a
proclamação do evangelho todo de tal forma que isso resulte numa dupla
transformação: a do pecador como indivíduo e a do contexto social em que ele
vive. A ênfase da missão repousa sobre numa tríplice tarefa: proclamação,
discipulado e serviço. Isto implica numa visão mais ampla dos conceitos
tradicionais de evangelho, reino de Deus e igreja. Consciente da hostilidade do
mundo contra Deus, todo cristão, como embaixador de Cristo, haverá de exercer
sua cidadania terrena segundo os princípios e valores da cidadania celeste.
PALAVRAS-CHAVE: missão, reino, cidadania.
INTRODUÇÃO
Este estudo consiste numa abordagem conceptual
de missão integral firmada no pressuposto de que o exercício da missio Dei[2]
através da igreja atual demanda por uma concepção
do evangelho e do reino de Deus, que transcenda os parâmetros da
polarização estabelecida através do antagonismo entre a teologia reformada
rígida e hermética e o universalismo arminiano flexível e aberto. Missão Integral é o tema teológico discutido na
missiologia contemporânea que demanda maior profundidade de estudo que os
demais temas doutrinários já explorados exaustivamente. é a expressão mais
apropriada para descrever a amplitude a identidade e o papel da igreja no mundo
das nações.
A concepção bíblico-teológica de Missão Integral
adquiriu, nas últimas décadas, uma significação mais ampla. Convencionalmente,
Missão Integral consiste na tarefa de
levar o evangelho todo a todos os homens (etnias) e ao homem todo (indivíduo).
Tal conceito tem apoio não somente no propósito universal de Deus como também
na unidade da raça humana inserida num contexto multifacetado que demanda por
respostas de Deus às suas aspirações mais amplas e às suas necessidades mais
prementes.
1 Os pilares da missão
René Padilla, um dos oradores do Primeiro
Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suíça,
em 1974, considerou que “o contexto no qual se evangeliza é tão importante
quanto qualquer outra coisa, ao se decidir acerca do significado do evangelho
para aquele mesmo contexto”.[3]
Isto significa que a evangelização não pode estar alienada da realidade. Por
esta razão, a Missão Integral da Igreja deve construir seu alicerce sobre três
pilares: (1) o compromisso com todo o desígnio de Deus; (2) o alcance de cada
ser humano em sua totalidade; (3) a transformação social do contexto em que a
pessoa vive.
O conceito etimológico de evangelho (boas novas) denota uma mensagem estritamente
contextualizada. O mensageiro é portador de uma notícia para seu povo, sua
geração e o mundo de sua época. Assim, Jesus tinha uma mensagem atual para seu povo e o significado de
tal mensagem aplicava-se ao seu contexto histórico-cultural imediato. Ele fazia
cumprir o desígnio de Deus proclamado pelos profetas. Jesus tinha consciência
de que a mensagem divina tinha de adequar-se ao kairós[4]
designado pelo próprio Deus. Mas, por outro lado, segundo sua perspectiva
escatológica, considerou também que o conteúdo da mensagem da salvação e da
vinda do reino divino perpassaria a história para ir além das gerações, até os
confins da terra e até a consumação dos séculos.
Nesta perspectiva, presume-se que, em sua
dimensão ultracultural, a igreja busque concretizar o propósito divino
através da aplicação do evangelho todo a cada pessoa individualmente e a cada
indivíduo na sua integralidade. Por outro lado, a contextualização do evangelho
requer uma adequação ou direcionamento de sua mensagem às necessidades de seus
destinatários. Isto torna necessária uma releitura das Escrituras, visando a
descoberta da resposta de Deus às demandas do mundo contemporâneo. Urge,
portanto, que se opte por uma teologia renovada, orientada sob a égide do
Espírito de Deus, que supra as aspirações transcendentais do homem da era pós-moderna.
Neste sentido, “o papel da teologia é interpretar e esclarecer a Palavra de
Deus com vistas à obediência a Jesus Cristo, na situação histórica. Em outras
palavras, a teologia é um instrumento para a contextualização do evangelho”. [5] O grande risco que se corre
nesta operação consiste não só no afunilamento das verdades eternas com perda
da amplitude da visão profética da igreja, mas também na aplicação seletiva de
um evangelho mutilado. René Padilla postula que a contextualização do evangelho
deriva de uma teologia renovada que esteja pautada nos seguintes princípios:
(a) “A base da teologia é a Palavra de Deus”;
(b) “O contexto da teologia é a situação
histórica concreta”;
(c) “O propósito da teologia é a obediência ao
Senhor Jesus Cristo”. [6]
Tal concepção expressa que a teologia nunca
poderá prescindir de sua práxis pastoral que, por sua vez, substancializa-se na
encarnação da Palavra de Deus, para viabilizar a inculturação do evangelho na
realidade social onde a igreja está inserida. Desta forma, a igreja jamais deve
situar-se à margem de sua própria cultura. Alienação cultural é fator que obsta
a missão eclesiástica e impede a formação de igrejas autóctones responsáveis
pela transformação social do seu contexto imediato. A contextualização do
evangelho haverá de ser um fluir da graça de Deus através da igreja que o
encarna para aplicá-lo integralmente à situação histórica de sua geração, no
seu ambiente cultural.
Em seu pronunciamento no congresso de Lausanne,
Billy Graham declarou: “A fé sem obras é morta. A fonte da salvação é a graça.
O terreno é a expiação. O meio é a fé. A evidência são as obras”. [7] Evangelização não pode
estar dissociada da responsabilidade social. A ação social é a aliada
inseparável da evangelização. Mas aqui há o risco de se cometer três erros,
como disse o evangelista Billy Graham: “O primeiro é negar que tenhamos
qualquer responsabilidade social como cristãos [...]. O segundo erro é permitir
que a preocupação de ordem social absorva todo o nosso tempo, tornando-se nossa
única missão [...]. O terceiro erro consiste na identificação do Evangelho com
algum programa político ou cultural particular”. [8]
A concepção teológica de missão integral está atrelada à natureza da igreja. Além da
visão concernente à sua natureza missionária, é de se convir que a vocação eclesiástica aponte para a
inteireza da mensagem sob os
diversos aspectos de sua abrangência. Para tanto, "os fundamentos bíblicos
para a missão abrangem a totalidade da
palavra de Deus". [9]
A identidade missionária da igreja é designada
por sua natureza apostólica. Como disse Johannes B. Blauw, “não existe nenhuma
outra igreja senão a igreja enviada
ao mundo e não há outra missão a não ser a da Igreja de Cristo”. [10] A apostolicidade é o mais
relevante atributo missiológico da igreja. Dele deriva o conceito de missão
expresso por Warneck:
Por missão cristã entendemos a
atividade conjunta da cristandade, buscando a implantação e a organização da
igreja cristã entre os não-cristãos. Tal atividade denomina-se missão, pois se
baseia na força do envio do
chefe da igreja cristã, é realizada por emissários
(apóstolos, missionários) e seu objetivo será atingido assim que não seja mais
necessário outro envio”. [11]
John Stott conceitua missão nos seguintes
termos:
Missão quer
dizer a atividade divina que emerge da própria natureza de Deus. Ora, o Deus
vivo da Bíblia é um Deus que envia; eis aí, portanto, o significado da palavra.
Ele enviou seus profetas a Israel, e enviou o seu Filho ao mundo. Este, por sua
vez, enviou os apóstolos, os setenta e a igreja. Enviou também o Espírito Santo
à igreja e hoje o envia aos nossos corações. Assim, a missão da igreja resulta
da própria missão de Deus, e nela tem de ser modelada. ‘Assim como o Pai me
enviou’, disse Jesus, ‘também vos envio a vós’ (Jo 20.21; cf. 17.18).[12]
O conceito de missão eclesiástica deriva do
atributo do apostolado da igreja. De acordo com 1Pe 2.9, a igreja tem uma
identidade e uma vocação missionária
designados pelos termos “geração eleita”, “sacerdócio real” e “nação santa”. A
igreja constitui-se na geração dos eleitos de Deus, a genos eklekton, [13] identificada como uma
comunidade de regenerados selecionados por Deus.
Ela é a segunda raça, a nova criação, a nova humanidade, onde estão congregados todos os filhos
de Deus, os nascidos por ação do próprio Deus. Eles se constituem, portanto,
nos membros componentes da corte divina. A eleição destes regenerados
implica vocação. Deus os gerou e os elegeu para um serviço
sagrado: a missão.
O exercício da missão requer autoridade e, para
isso, a igreja se constitui num basileion
hierateuma, [14]
isto é, na comunidade sacerdotal do reino divino. A expressão “sacerdócio real”
ou “sacerdócio régio” é termo usado para descrever a realeza ou o grau de nobreza da igreja como o corpo de sacerdotes
da família real (de Deus). O termo denota o exercício de um ofício com duplo
aspecto: um sacerdotal e outro real. Através do primeiro, os santos agem como
instrumentos da mediação de Cristo, viabilizando a reconciliação entre o mundo
e Deus. Por meio do segundo, eles se apresentam frente ao mundo como legítimos
representantes do reino divino, para chamá-lo ao arrependimento e à obediência
a Cristo, o Soberano Árbitro do universo.
No contexto da missão, a igreja é uma comunidade
de santos constituídos em nação, a ethnos
hagion. [15] O termo ethnos denota um sentido político, designando a
igreja como uma nação entre as nações,
distinta das demais pelo atributo de santidade que lhe confere o termo grego hagion. Isto expressa as relações de aliança que
existiam entre Deus e Israel (cf. Ex 19.6). Por ter fracassado em guardar tais
relações, Israel deixou de ser nacionalmente
povo de Deus. Em seu lugar, os santos, tanto judeus como gentios
inseridos na igreja, organizam a nova nação
herdeira das promessas e prerrogativas que a nova aliança absorve da antiga.
Sob a ótica divina, a igreja porta-se no mundo
como a nação prometida que substitui Israel na aliança de Deus com
Abraão (cf. Ex 19.5-6.) para canalizar a bênção divina ao mundo (cf. Gn 12.1-3). Esta nova nação age em
missão no mundo, não tendo cidadania terrena permanente, pois, como súditos do
reino divino, são “peregrinos e forasteiros” (1Pe 2.11),
cuja pátria está nos céus, segundo a teologia de Paulo. A expressão usada por
Pedro “povo de propriedade exclusiva” (1Pe 2.9) denota a ideia de uma aquisição
por resgate.
Neste sentido, a igreja é povo de possessão
divina, liberto do domínio das forças do mal que operam no mundo e transportado
para o reino do Filho amado de Deus. A implicação disso é que todos os santos
são constituídos em cidadãos do reino divino estabelecido por Cristo aqui na
terra. Por isso, os cristãos vivem e agem no mundo segundo os valores do reino
celeste. São agentes humanos sob ordem
divina que exercem sua nova
cidadania através da missão de promover, expandir e consolidar o reino
de Deus entre os homens. Como súditos do reino e “embaixadores de Cristo” (2Co
5.20), no mundo das nações, os santos são porta-vozes oficiais de Deus e de
Cristo, incumbidos da missão de reconciliar o mundo com Deus, proclamando “as
grandezas daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).
Isto nos traz a convicção de que a missão é
divina, não humana. Embora o termo “missão” não conste nas Sagradas Escrituras,
seu conceito está fundamentado na Palavra de Deus. Missão é termo
essencialmente teológico empregado pela missiologia para designar a atividade
de Deus no cumprimento do seu eterno desígnio. Missão está radicada na natureza
do próprio Deus. A atividade criadora, preservadora e redentora de Deus exprime
a missão divina. Especificamente, na história da salvação, as Escrituras
apresentam Deus como um ser que envia. Os patriarcas, os profetas, o Messias, o
Espírito Santo, os apóstolos, e por fim a igreja, foram enviados em missão ao
mundo. Na teologia paulina, esse mesmo Deus que é “sobre todos”, também “está
em todos” com o propósito de agir “por meio de todos” (Ef 4.6). Este agir
divino por meio do seu povo é missão divina no mundo.
O conceito de missão torna-se mais evidente a
partir da oração sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18); e do comissionamento dos discípulos:
“Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Isto estabelece o
elo entre a missão de Jesus e a missão da igreja. Esta declaração de Jesus traz
consigo algumas implicações teológicas que, em seguida, são apresentadas.
Deus é o sujeito
da missão. Sua missão consiste na restauração de toda a criação (o homem e o
universo) atingida fatalmente pelo pecado e subjugada pelas hostes do mal. A
execução de sua missão ocorre pelo envio de seu Filho ao mundo em uma missão
salvadora e, por meio do Filho, o Pai envia a igreja. Em decorrência deste
fato, a missão da igreja fundamenta-se na autoridade
soberana divina. O retorno do Logos divino à destra do Pai constituiu-se em sua
exaltação como o Soberano Árbitro do Mundo (cf. Mt 28.18). A proclamação do
evangelho não pode excluir o anúncio de que o mundo agora tem um novo chefe. Como sujeito da missão, o
Pai, por meio do Filho, requisita o serviço de sua igreja e a envia ao mundo, o
mesmo ao qual ele enviou o Filho e o qual Ele ama com amor imensurável.
Por esta razão, o ministério da igreja deve
estar pautado no ministério de Jesus. As razões e o propósito da missão de
Cristo e da igreja são respectivamente os mesmos. Por conseguinte, a missão de Jesus é parâmetro e modelo para
a missão da igreja. [16] Isto quer dizer que cada
cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi o apóstolo do Pai. Em
decorrência deste fato, a igreja se constitui numa comunidade apostólica, tendo
como referencial aquele que a envia. Uma vez que a missão de Jesus tomou forma
e concretude em seu tríplice ofício de profeta, sacerdote e rei, a missão da
igreja também o será. Segundo Charles Van Engen, “se a igreja se perceber
continuadora do ministério de Cristo no mundo, ela o fará em relação à função
tríplice de Cristo.[17]
A igreja é uma comunidade messiânica que assume
seu ofício profético ao exercer sua tarefa proclamadora do evangelho do reino.
Ao agir como a comunidade mediadora, ministrando os serviços do culto e levando
o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela o faz por meio de
seu ofício sacerdotal. Por ter recebido as “chaves do reino dos céus” e
promover em nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e Deus, a igreja é
nomeada como a “embaixada” do reino de Cristo no mundo (cf. 2Co 5.19-20), legitimando
assim o exercício de seu ofício real – reino sacerdotal – com o fim de executar
as obras da realeza divina designadas por Cristo. Citado por Van Engen, Colin
Williams declara:
Pode-se ver
com facilidade que esses três ofícios estão intimamente relacionados às marcas
da igreja na tradição da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores], onde
a Palavra é verdadeiramente pregada (profeta), os sacramentos são divinamente
ministrados (sacerdote) e a santa disciplina é mantida (rei).[18]
Para que a missão da igreja seja pautada pela
missão de Jesus é necessário que cada cristão tenha sua vida modela por Jesus.
O Novo Testamento define o padrão de vida cristã com base na personalidade de
Cristo. Uma vez que todo verdadeiro cristão teoricamente tem a mente de Cristo
(cf. 1Co 2.6), consequentemente, sua mente deve estar ocupada com as coisas que
ocupam a mete de Deus (cf. Cl 3.2). Sua conduta e forma de pensar jamais devem
estar em conformidade com os padrões deste século (cf. Rm 12.1-2).
O que se deduz desse tríplice ofício apostólico
da igreja é que ela, por meio de sua voz e ação profética, clama por justiça e
a põe em prática na sua comunidade. Por meio de sua ação sacerdotal, marca sua
presença sacramental e reconciliadora, em seu contexto social, onde as pessoas
a encaram como a comunidade mediadora da graça divina por vê-la oferecer-lhes a
salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo que nela habita e do qual ela é o
corpo. Finalmente, por meio de seu ofício régio, a igreja assume a incumbência
de implementar e preservar os valores do reino de Deus na cultura, em todas as
instâncias do poder e em todos os níveis das relações humanas. Para que seja
bem-sucedida no fiel cumprimento de sua missão, a igreja precisa de pessoas
treinadas, que estejam moral, intelectual e espiritualmente habilitadas (cf Ef
4.11-13).
Finalmente, sendo Jesus modelo para sua igreja,
é imprescindível que a missão eclesiástica esteja centralizada na promoção de
seu reino no mundo. O reino foi para Jesus, como também o é para a igreja, o
tema central de sua prédica e causa objetiva de sua encarnação. Desta forma, a
igreja apresenta-se ao mundo como a comunidade sacramental que assinala a
presença do Rei que nela extensivamente se encarnou.
2 O mundo como
campo da missão e de conflito
Diante de tal desafio com o qual se depara o
cristão, é mister que se levante a questão sobre o seu papel em sua relação com
o mundo. Independente dos conceitos bíblicos que queiramos adotar para a
palavra “mundo”, a igreja tem uma relação com ele. Mundo pode significar a
terra onde o homem habita (cf. Sl 24.1); ou ainda, toda a humanidade (cf. Jo
3.16); e, por último, pode ter o sentido de um sistema de valores contrários
aos valores do reino de Deus, isto é, “um sistema no qual o mal está organizado
contra Deus”.[19]
Este é o conceito adotado aqui.
A razão pela qual o mal no mundo é corporativo e está organizado
contra Deus é porque ele sofre a influência direta das “forças espirituais do
mal” que, segundo o apóstolo Paulo, compõem-se de “principados e potestades,
[...] dominadores deste mundo tenebroso” (Ef 6.12). Todo aquele que estiver
comprometido com este sistema é considerado inimigo de Deus, e
conseqüentemente, aliado do diabo (cf. Tg 4.4). Satanás é o “deus deste século”
(2Co 4.4) e, como disse Jesus, também é “o príncipe deste mundo” (Jo 16.11).
Na tentação a Jesus, no deserto, Satanás, depois
de mostrar-lhe “todos os reinos deste mundo”, fez-lhe uma proposta: “dar-te-ei
toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu
a dou a quem eu quiser. Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua” (Lc
4.5-7). Isto parece evidenciar que, por traz de todo sistema econômico e
político que promove os interesses humanos, estão as forças espirituais do mal
em sua ação manipuladora.
A humanidade está sob o domínio do “império das
trevas”, pois “o mundo inteiro jaz no maligno” (1Jo 5.19). A evangelização dos
gentios tem por finalidade “convertê-los das trevas para a luz e da potestade
de Satanás para Deus” (At 26.18). Somente os regenerados foram libertos do
império das trevas e transportados para o reino do Filho amado de Deus (cf. Cl
1.13). Desta forma, há duas realidades, dois níveis de poder, dois reinos: o
reino dos céus e os reinos deste mundo.
Martinho Lutero dividia a humanidade em dois
grupos: os que pertencem respectivamente ao reino de Cristo e ao reino do
mundo. Significa dizer que todo verdadeiro cristão vive em um mundo hostil onde
age como ministro da reconciliação. Isto implica numa concepção cristã de dupla
cidadania a serem exercidas por cada cristão individualmente. Júlio A. Ferreira descreve a concepção de
Lutero como existindo dois reinos e dois regimes da seguinte forma:
Há dois
reinos e, por isso, temos de dividir os filhos de Adão em dois grupos: os que
pertencem ao Reino de Cristo, e os que pertencem ao Reino do Mundo. O primeiro
compreende os fiéis, isto é, os que crêem em Cristo; o segundo, a todos que não
são cristãos.[20]
A conclusão a que se pode chegar é que a
humanidade não redimida foi “capturada” e encontra-se como refém dos poderes
destruidores do mal. A igreja é uma agência libertadora destinada à salvação do
indivíduo e à transformação da sociedade. Seu ministério tem efeito
transformador, pois ela é instrumento de Deus para a transformação dos “filhos
das trevas” em “filhos da luz”, para enviá-los ao mundo como agentes promotores
de mudanças em todas as áreas da vida humana, implementando os valores do reino
no seu contexto. Portanto, esta concepção torna evidente que o êxito da missão
da igreja estará dependendo de uma visão correta, por parte de cada cristão, do
que significa ser santo e de uma visão correta do significado da missão no
mundo.
Na encarnação, o destino do Filho de Deus foi o
mundo de Deus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao
mundo” (Jo 17.18). O reino de Deus se fez presente na pessoa de Jesus, mas de
forma incompleta. Ainda vivemos na esperança da salvação e o novo céu e a nova
terra ainda estão por vir. Este éon é
o tempo da tolerância longânime de Deus que não quer que “nenhum se perca,
senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9).
Arrependimento implica uma reestruturação de
valores e uma reorientação da vida e personalidade humanas. Ele aponta para a
dimensão social do reino e se caracteriza pelo retorno a Deus, ao propósito de
Deus e a uma nova vida no mundo. “Quando a evangelização não leva a sério o
arrependimento, é porque não leva a sério o mundo, e, quando não leva a sério o
mundo, tampouco leva Deus a sério”.[21]
A presença de Cristo no mundo dos homens
assinala que Deus está ativo na história para fazer cumprir os seus desígnios. Portanto,
“Jesus se coloca na linha do cumprimento, não só porque cumpre o que tinha sido
prometido e que, portanto, era esperado por Israel, mas também no sentido mais
profundo de que nEle se cumpre o evento definitivo da história de Deus com os
homens”.[22] Neste sentido, o
arrependimento tem uma conotação escatológica, uma vez que ele se constitui no
marco que delimita e separa a velha da nova dispensação. A era do arrependimento
que encerrará a história impõe um novo padrão de vida que resulta do retorno do
homem não só a Deus, mas também ao seu próximo. Presume-se também que, como
consequência, o arrependimento produz uma reorientação total da vida no mundo
como sinal de transformação.
O Cristo preexistente e encarnado no homem Jesus
veio ao mundo dos homens, não ao mundo ideal, mas ao mundo tal como ele é.
Jesus enviou sua igreja “como ele foi enviado” ao mundo geográfico da história,
o mundo que, por causa do pecado e a influência das hostes do mal, tornou-se
hostil a Deus. A paz entre o homem e Deus é o resultado esperado da missão (cf. 2Co 5.18-19). Segundo Mateus, Cristo,
no exercício de sua missão, realizou três tarefas fundamentais: proclamação
– “pregando o evangelho do reino”; discipulado – “ensinando nas
sinagogas”; diakonia[23] – “curando toda sorte de
doenças e enfermidades”. Sua motivação residia em sua compaixão ao “ver as
multidões [...] aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (cf. Mt
9.35-36).
As necessidades humanas, das quais as maiores
vítimas eram os pobres e os oprimidos, foram o motivo principal para que Jesus
encarnasse o espírito e o papel do Ebed
Yahweh (Servo de Javé). A igreja de Jesus é uma igreja serva. Como disse
Pedro Arana, “A igreja, assim como o Senhor Jesus, deve ser uma igreja do
caminho e não do balcão. Ela não pode permanecer como espectadora da história:
tem de descer para onde se travam as lutas reais dos homens. Ali se encontram
as necessidades, que são o chamado premente da igreja para que possa cumprir
sua missão”.[24]
A concepção do mundo como campo da missão divina deriva da interpretação que
Jesus deu respectivamente à parábola do semeador e à do joio e do trigo. Nesta
última, Jesus descreve o aspecto escatológico do reino, ao ensinar que os
frutos da semeadura divina através de Cristo e da igreja haverão de ser
colhidos na consumação dos séculos.
Os escritos do Novo Testamento testificam de uma
situação conflituosa em que vivem os santos com o mundo. O conflito se estabelece
a partir da queda do homem na qual Satanás teve participação. O gestor do mal,
a “antiga serpente”, que se manifesta como “sedutor de todo o mundo” (Ap 12.9;
20.22), cujos intentos são opostos aos desígnios de Deus, é rotulado como
“adversário” e/ou “inimigo” (Mt 13.39; Lc 10.19) de Deus e de seu povo. O plano
da redenção tem seu início na promessa do Redentor, conforme o capítulo 3 do
livro de Gênesis (cf. Gn 3.15). Esta passagem descreve a resolução divina de
estabelecer uma “inimizade” entre a “serpente”, com toda a sua “descendência”,
e o “descendente” da mulher, que, segundo Paulo, é Cristo (cf. Gl 4.4). Deus
estabeleceu no universo criado um ambiente de hostilidade, estado de guerra,
contra as forças do mal. Os sistemas de ordem político-econômica e as
estruturas sociais estão, segundo o Novo Testamento, manipulados pelos poderes
destruidores do mal.
O Apocalipse, numa linguagem enigmática, narra o
drama do embate entre a igreja e o Estado Romano. O Estado impunha-se, através
do imperador, como deus e senhor. Os cristãos consideravam tal atitude como
blasfêmia, pois aviltava a Deus, constituindo-se num desafio frontal à
soberania divina de Cristo. A postura dos cristãos com respeito a César
desafiava a honra do imperador e as estruturas sociais do império. O não
reconhecimento das prerrogativas divinas atribuídas a César era sinal evidente
da convicção da divindade e da soberania de Cristo, a quem os cristãos
confessavam como “o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 17.4). Para o
governo romano, os seguidores do crucificado eram reacionários resistentes ao
Estado, dignos de serem exterminados com o fim de garantir a paz e a ordem nas
províncias onde os cristãos marcavam sua presença.
Em passagens como Rm 16.20 e 1Co 15.25-27, Paulo
dá ênfase ao cumprimento, por meio de Cristo, da promessa divina de que o
descendente da mulher haveria de “esmagar a cabeça da serpente” (cf. Gn 3.15),
desferindo assim o último golpe sobre Satanás, e dando fim ao conflito
espiritual com o triunfo de Cristo e da igreja.
O conflito com o mundo tem um aspecto ideológico, isto é, deflagra-se no campo das
ideias, dos conceitos, nas formas de expressão do pensamento humano. “O
deus deste século” que cegou o entendimento dos incrédulos (cf. 2Co 4.4)
é o mesmo que induz os homens ao forjamento das ideologias anti-deus que
predominam no mundo da pós-modernidade. O “príncipe da potestade do ar” é o
espírito que atua nos “filhos da desobediência”, os quais seguem o curso deste
mundo (cf. Ef 2.2), onde os que dele fazem parte repudiam os valores
espirituais, dando evasão à vontade da carne, tornando-se por natureza “filhos
da ira”.
Quem é o mentor deste século? Quem é e “onde
está o inquiridor [25] deste século?” (cf. 1Co
1.20). Prosseguindo em seu questionamento, Paulo deduz que Deus tornou “louca” [26] toda a sabedoria deste
mundo, uma vez que o homem desconhece por completo os desígnios do Criador (cf.
1Co 1.21; 2.14). Por meio do evangelho, Cristo é revelado como sabedoria
divina, a qual os homens, tanto judeus como gentios, repudiam por considerar
absurda a mensagem do evangelho. Mas, paradoxalmente, esta é a maneira pela
qual a verdadeira fé se manifesta e pela qual os homens são salvos (cf. 1Co 1.21-24).
Na teologia de Paulo, o resgate dos que
pertencem a Cristo é obra que se concretiza na história por meio da pregação,
cujo conteúdo exprime a sabedoria divina, a qual Deus “preordenou desde a
eternidade para a nossa glória” (1Co 2.6-7). Como consequência, nós que “não
temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito de Deus” (1Co 2.12) temos
agora “a mente de Cristo” (1Co 2.6). O resultado é que todos os que foram
“ressuscitados com Cristo” devem buscar “as coisas lá do alto, onde Cristo vive”
e jamais pensar “nas coisas que são aqui da terra”. O “espírito do mundo”,
denominado pelo Novo Testamento como “príncipe da potestade do ar”, é o
responsável pelo estabelecimento da ordem atual das coisas no mundo como também
o autor das ideologias anticristãs que predominam entre os homens. Desta forma,
ele dita a mente deste século e dirige o curso do presente éon (cf. Ef 2.2).
O conflito da igreja com o mundo assume também
um caráter ético. A impiedade e
a perversão humana obstruem a justiça (cf. Rm 1.18). Tal conduta manifesta o
caráter degenerativo humano. A hostilidade a Deus por parte dos homens decorre
do fato de que, “tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem
lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios,
obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21). Tal rebeldia atingiu o
grau máximo ao optar pela preferência humana em prestar culto à própria criação
(cf. Rm 1.23). Esta atitude consiste em ato de humilhação e de agressão direta
à santidade divina. “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia” (Rm
1.24), a “paixões infames” (Rm 1.26) e também “a uma disposição mental
reprovável para praticarem coisas inconvenientes” (Rm 1.28). A hostilidade dos
pecadores é o motivo pelo qual Deus os tem como “inimigos” com os quais busca a
reconciliação por meio do seu Filho, Jesus Cristo (cf. Rm 5.10-11). Todos os
não reconciliados vivem moralmente segundo o “pendor da carne, que é inimizade
contra Deus” (cf Rm 8.7). A ética deste mundo consiste em um sistema de valores
antagônicos aos valores do reino de Deus. Tais valores são identificados como
“concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (Jo
2.15-17). Portanto, “a amizade do mundo é inimiga de Deus” e todo “aquele,
pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4).
Além de tornar-se um inimigo de Deus cada amante do mundo também se constitui
num aliado do diabo, um súdito de Satanás, pois “o mundo inteiro jaz no
maligno” (1Co 5.19). A ação missionária da igreja implica não somente na
proclamação das boas novas do reino, mas também no embate contra o sistema
maligno que impera no mundo e corrompe tanto o indivíduo como a sociedade. Em
seu confronto com o mundo, segundo opina Padilla,
A igreja tem
somente duas alternativas: ou limitar sua ação ao aspecto religioso da vida,
satisfeita com um cristianismo que assimila os valores da cultura e se adapta
ao mundo, negando o evangelho; ou concebendo-se como uma comunidade para a qual
não há mais que um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo, e
consequentemente entrar em conflito com o mundo. [27]
A vocação profética da igreja demanda
compromisso com a pregação do evangelho do reino de Deus através da qual a
igreja encarna o reino em meio aos reinos deste mundo. Em consequência disso, o
conflito é inevitável. Ao encarnar extensivamente a pessoa do Cristo
glorificado, a igreja é desafiada a enfrentar o condicionamento do mundo e seus
poderes de destruição. A igreja jamais deve romper com suas raízes de origem, o
caminho da cruz, uma vez que ela deriva sua razão de existir de sua aliança com
Jesus Cristo, cuja rejeição aos condicionamentos mundanos do seu tempo o levou
à morte de cruz. A desordem estabelecida no mundo por causa do pecado é
essencialmente favorável e estimuladora ao surgimento dos problemas sociais em
todas as áreas do relacionamento e da vida humana. Diante disso, necessário é
que se investigue qual a relação entre a evangelização e a responsabilidade
social da igreja.
3 Evangelização e
responsabilidade social cristã
Em sua tentativa de discernir a relação entre
evangelização e responsabilidade social, David J. Bosh declara que o segredo
está na “distinção entre dois mandatos diferentes: o espiritual e o
social. O primeiro refere-se à incumbência de anunciar a boa nova da salvação
através de Jesus Cristo; o segundo conclama os cristãos a participar
responsavelmente da sociedade humana, incluindo o trabalho em prol do bem-estar
humano e da justiça”.[28] Isto pode ser comprovado
pelo apostolado de Jesus apontado pelos teólogos como paradigma da missão
eclesiástica.
Ao proclamar o evangelho, Jesus tanto anunciava
a chegada do reino tão esperado pelos seus patrícios como também conclamava
todos ao arrependimento e a crerem nele como meio de tomarem parte no reino. O
estabelecimento do reino de Deus era o motivo central do ministério de Jesus. [29] Além da proclamação em
massa do evangelho, Jesus lidava com pequenos grupos, tentando formar uma
equipe de discípulos através do ensino nas sinagogas, interpretando o que as
Escrituras diziam sobre ele e o momento histórico em que seu povo vivia na
expectativa do reino escatológico anunciado pelos profetas. A evangelização do
mundo seria uma tarefa missionária a ser realizada por seus discípulos
posteriormente. [30]
A proclamação pública do evangelho do reino e o
ensino das Escrituras nas sinagogas, não eram suficientes para convencer os
judeus de sua geração. Seus contemporâneos precisavam de algo mais: de uma
concepção correta tanto do significado do reino de Deus como também da pessoa
do Messias. Portanto, era necessário que, em seu ministério, Jesus vivesse na
prática os valores do reino, manifestando os sinais de sua implementação no
mundo.
Cristo constatou que seu povo estava oprimido
por forças políticas e econômicas poderosas que o dominavam sob a ameaça de um
massacre. Roma subjugava reinos e nações pelo poder da espada e pelo terror da
cruz. A vida de um judeu estava nas mãos do procurador romano, que tinha o poder
de decisão sobre quem devia viver ou morrer. Impostos pesados, cobrados por
Roma através dos publicanos, espoliavam o povo, fazendo multiplicar-se o número
de indigentes que, marginalizados pela sociedade corrompida pelo dinheiro,
estavam à beira do desespero.
A casta sacerdotal, corrompida pela avareza,
mercadejava a religião, aceitava suborno e subornava. Fizeram da “Casa de
Oração” um “covil de salteadores” (Lc 19.46). O crescimento da pobreza fazia
crescer também o número de enfermos e lunáticos. Especialmente, os pobres, os
marginalizados que viviam “na região da sombra da morte”, eram a prioridade de
Jesus, o Messias tão esperado, que havia de trazer-lhes o reino, a “paz sem fim
[...], o juízo e a justiça” (cf. Is 9.1-7). O serviço aos pobres, famintos,
enfermos e aflitos fez do Cristo o servo do seu próprio povo. É como disse o
apóstolo Pedro ao Centurião Cornélio: “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o
Espírito Santo e com poder, o qual andou por toda parte, fazendo o bem e
curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele” (At 10.38). Seu
ministério, segundo o profeta Isaías, seria marcado pela evangelização e
serviço em favor dos pobres, cativos e oprimidos (cf. Lc 4.17-21).
Movido de íntima e profunda compaixão, Jesus se
dedicou com afinco às multidões de homens, mulheres e crianças carentes. Eram
pessoas necessitadas de cuidados especiais. Precisavam urgentemente de alguém
que os amasse, que os fizesse elevar sua autoestima e sentirem-se como seres
humanos. O estado de total desamparo e abandono em que se encontravam fez que
Jesus os considerasse “como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36).
3.1 O aspecto
humanitário da missão eclesiástica
A dimensão social do evangelho proclamado por
Jesus deriva da esperança escatológica que fora alimentada pela pregação dos
profetas do Antigo Testamento. A ênfase na prática da justiça e na defesa dos
desafortunados era a tônica dos arautos de Javé cujas expectativas teriam sua
concretude por ocasião da vinda do Messias. Os desequilíbrios sociais seriam
substituídos pela equidade a prevalecer no regime a ser estabelecido pela nova
ordem do reino messiânico. Discriminações e privilégios teriam seu fim e a
igualdade de todos perante Deus haveria de ser reconhecida.
Analisando o contexto socioeconômico em que
viviam os judeus contemporâneos de Jesus, torna-se evidente que a mulher tinha
desvantagem em relação ao homem. E. Morin depõe que “Flávio Josefo escreveu, em
seu livro Contra Apião: ‘A mulher, diz a Lei, é inferior ao homem em
todas as coisas. Ela deve obedecer não para se humilhar, mas para ser dirigida,
pois foi ao homem que Deus deu o poder’ (2, 24)”. [31] Prosseguindo, ele
acrescenta que a seguinte prece era recomendada aos homens: “Louvado seja Deus
que não me criou mulher”. [32]
Sendo o homem, segundo a cultura hebraica, o
provedor e o protetor do lar, o casamento era a alternativa mais viável para a
sobrevivência da mulher. Tornar-se viúva era para a mulher a pior de todas as
desgraças, principalmente se ela não tivesse um filho varão. Pode ter sido por
esta razão que Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim. Ressuscitar seu
filho seria devolver-lhe a alegria de viver, eliminando o medo de cair na
penúria. Provavelmente, pelas mesmas razões, o Senhor Jesus ressuscitou Lázaro,
cujas irmãs, ainda solteiras e provavelmente órfãs de pai e mãe, tinham o irmão
como o sustentador do lar. A cura de um cego, um leproso ou um coxo, mais que
alívio do sofrimento, era uma forma adotada por Jesus para a transformação de
um mendigo em trabalhador. Indubitavelmente, a proclamação do evangelho do
reino implica atos de cidadania.
As Escrituras consideram não só a gravidade dos
problemas sociais como também definem princípios e mandamentos que expressam a
vontade de Deus para com o homem, no seu contexto sociocultural. O Velho
Testamento expressa alguns mandamentos que apontam diretrizes que o povo de
Deus deveria seguir quanto às questões relacionadas à pobreza e ao trabalho. No
que se refere a tais questões, a legislação mosaica tinha o propósito de levar
os filhos de Israel à prática da justiça. Moisés ensinou que a pobreza jamais
seria erradicada da terra; por esta razão, os abastados deveriam ser generosos
e compassivos com os necessitados (cf. Dt 15.7-11). Aos incapacitados para o
trabalho estava assegurado o direito ao sustento integral (cf. Lv 25.35-37).
Os ensinos de Jesus vão além do que Moisés
ensinou aos filhos de Israel. Jesus enfatiza que os pobres têm prioridade no
reino de Deus e que aos mesmos, além de socorro, devemos prestar honrarias e
hospitalidade. Por toda a Escritura, encontramos sinais da preocupação de Deus
com os problemas sociais. O Novo Testamento enfatiza a responsabilidade dos
cristãos perante a família, a sociedade, o Estado e o mundo, tanto no que se
refere à ética como também à vida econômica, a mordomia dos bens e a aquisição
de riquezas. Os problemas sociais de um povo afetam a vida da igreja e o
contexto onde está inserida. Portanto, a missão da igreja no mundo não pode
estar desarticulada dos problemas sociais que comprometem o padrão de vida e a
existência humanas. Referindo-se à vida cristã no mundo, Manfred Grellert
declara:
Ser cristão
significa assumir um papel responsável perante o mundo de Deus. É recusar
abdicá-lo ao diabo e às hostes do mal. É sofrer com o mundo como ele é, por causa
do sonho como o mundo deveria ser, e como Deus o quer. Não é mais possível
conceber a vida cristã hoje sem uma preocupação com ecologia, recursos naturais
limitados, guerra [...], refugiados, e a pobreza que avilta os céus [...]. [33]
O caráter humanitário da missão fundamenta-se em
razões pertinentes, dentre as quais duas requerem atenção muito especial por
parte da igreja atualmente: a desvalorização da vida e a necessidade do resgate
da cidadania. Percebe-se, mesmo numa leitura superficial, que a Bíblia registra
a preocupação de Deus com a salvação do homem e a criação de um novo céu e uma
nova terra. O que move Deus a salvar o mundo não é outra coisa senão a situação
em que se encontra a humanidade após a queda. Além da desordem social, o pecado
produziu na sociedade um sistema de valores que se opõe à vontade e ao
propósito de Deus para com sua criação. O grande desafio da igreja consiste em,
através de suas obras, tornar-se “a luz do mundo”, denunciando e confrontando
os sistemas que imperam no mundo, mentalizando a perversidade nas gerações.
Por revelação divina, Paulo “discerniu que os
principados e potestades do mal estavam entrincheirados em estruturas
ideológicas que oprimiam os homens”. [34] Desta forma, o mundo é o
campo onde a igreja entra em disputa contra as potestades do mal pela conquista
da liberdade dos cativos subjugados por este sistema. Para este combate, a
igreja faz uso das armas espirituais, “poderosas em Deus, para destruir
fortalezas, anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o
conhecimento de Deus, levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo”
(2Co 10.4-5). Esta visão apocalíptica do kosmos
é o cenário que nos faz compreender o significado e a dimensão da obra
redentora de Cristo.
A proclamação do evangelho do reino propunha
trazer os homens ao arrependimento e submetê-los à soberania de Jesus Cristo
como condição sem a qual a salvação não seria alcançada. O kerygma [35] apostólico suscitava de
certo modo um embate entre Cristo e César, entre a igreja e o mundo, mas, por
outro lado, produzia de forma paradoxal a formação de comunidades cristãs que
vieram a compreender que a submissão às autoridades terrenas era uma expressão
de sua sujeição ao próprio Cristo como soberano do universo. O exercício da
cidadania terrena haveria de estar pautada pelos princípios e valores da
cidadania celeste.
O mundo atual caracteriza-se pela formação de
uma sociedade onde a inversão de valores degrada a vida, avilta o caráter e o
homem se animaliza. Neste contexto, a igreja age como instrumento de Deus para
humanizar cada indivíduo, restaurando nele a imagem divina e preparando-o para tornar-se um cidadão da
“pátria celestial”. Somente através do exercício consciente de sua cidadania
terrena, o cristão há de aprender e desenvolver pela práxis a defesa da
justiça, e fazer uso responsável de sua liberdade. Ele se engajará nas lutas em
defesa dos injustiçados, dos desamparados, dos que não têm voz (cf. Pv 31.8),
aceitando correr o risco de sofrer o martírio. Este é o sentido, o preço e o
propósito humanitário da missão cristã no mundo.
Mas aqui há o perigo de uma confusão que pode
surgir. Em relação ao propósito salvífico divino, a ação de cidadania não é a
prioridade absoluta. Em alguns lugares do mundo, missão se confunde com obras
sociais. Rajendran argumenta que “o aumento na assistência social precisa ser
assistido e um equilíbrio deve ser buscado, ou então as missões poderão
tornar-se organizações meramente sociais”. [36] É bem verdade que o
descuido pode levar ao desvio do propósito. A missão eclesiástica necessita
hoje de uma atenção especial quanto ao desenvolvimento de sua práxis. Assim
pensando, Rajendran reconhece que “[...] há uma necessidade de [...] as missões
continuarem reiterando as suas metas, visões e o seu modus operandi a fim de manter em foco o objetivo final – levar as
pessoas para Cristo [...]”.[37]
3.2 O alicerce do
humanitarismo cristão
A ação social da igreja fundamenta-se em, pelo
menos, três pontos de apoio: nos princípios éticos que definem o padrão de vida
humana, nos princípios que estabelecem a relação entre o cristão e o mundo, e
no critério divino pelo qual seremos julgados. A atuação dos cristãos no mundo
é definida não somente pelo seu senso de vocação, mas também pelos princípios
éticos que adotam em sua conduta. As Escrituras destacam três mensagens de
caráter ético que, em seu bojo, incorporam os princípios determinados por Deus
e que definem o padrão de comportamento humano: o decálogo, os discursos dos
profetas e o sermão de Jesus pronunciado no monte.
Deus é a fonte de toda exigência moral. O homem,
criado à imagem e semelhança de Deus, é um ser relacional. Os mandamentos
divinos, expressos no decálogo, definem com muita clareza os parâmetros que
medem e julgam os atos do indivíduo no seu relacionamento com Deus, com a
família e com o seu semelhante. Quando Deus proíbe matar, ele estabelece o
direito individual à vida; quando proíbe furtar, estabelece o direito
individual à posse igualitária da propriedade; quando proíbe dar falso
testemunho contra o próximo, estabelece o direito individual à integridade
moral e protege a reputação do justo; quando Deus proíbe o adultério, está
protegendo o cônjuge, o matrimônio e a família. Quando Deus ordena que os
filhos honrem seus pais, estabelece a ordem na família, onde os pais exercem
autoridade e os filhos a eles obedecem. Estes são princípios éticos divinos
universais que estabelecem a ordem social.
No discurso dos profetas, o indivíduo aprendia
ter consciência de sua responsabilidade social. A sua religião seria de todo
inútil sem a prática da justiça, da beneficência e da humildade. Os profetas
atacaram com ênfase: a) a injustiça econômica manifestada na exploração do
trabalhador, na ganância e desonestidade dos comerciantes e dos
“latifundiários”; b) a má conduta no campo jurídico-político evidenciada
através da corrupção generalizada e de uma legislação injusta; c) a situação de
opressão em que a população pobre vivia sob o jugo escravizador dos detentores
da fortuna e do poder. Israel deveria ter sido exemplo para o mundo. A missão
de Israel no mundo das nações consistia em servir de canal da bênção divina
para todas as famílias da terra; e só teria significado e valor pelo
cumprimento da vontade de Deus expressa nos princípios e valores éticos
expressos na lei divina.
Na pregação de Jesus, o sermão do monte
constitui-se no seu código ético. Neste discurso, Jesus exprime o caráter do
indivíduo que faz parte do reino de Deus. Este é pobre de espírito, manso, tem
fome e sede de justiça, é misericordioso, puro de coração e pacificador.
Duas figuras são usadas por Jesus para explicar
e exemplificar a ação do cristão na sociedade: o sal e a luz. Como “sal da
terra”, os cristãos são responsáveis por desempenharem três funções: a)
preservar os valores morais e espirituais que podem evitar que sua comunidade
“apodreça” no pecado; b) dar sabor e significado à vida, a razão de nossa
existência; c) desenvolver sua propriedade terapêutica, ministrando no mundo a
cura para as feridas da alma que o pecado causa. Portanto, assim como o sal
precisa infiltrar-se na substância onde atua, os cristãos necessitam
envolver-se na vida do seu país.
Como “luz do mundo”, cada cristão precisa viver
de tal forma que suas ações e conduta sejam exemplares e notadas por todos.
Seus atos de justiça farão que sua vida brilhe, sirva de modelo e guia para os
perdidos. As obras de um cristão, em sua atuação direta no mundo, haverão de
ser motivo para que o mundo glorifique a Deus (cf Mt 5.16). A vida cristã
haverá de ser transparente aos olhos do mundo e um referencial para o mundo. O
cristão será visto e se destacará por sua atividade na vida comunitária. Não
pode adotar uma postura omissa e reclusa, mas participativa, envolvendo-se nas
causas e reivindicações justas do seu povo. Como instrumento de Deus, exercerá
influência, desempenhando com santidade, amor e responsabilidade, seu papel de agente transformador. Tudo isso vem
mostrar que a igreja, no exercício de sua missão, constitui-se em uma agência
do reino dos céus com um propósito duplo: a salvação dos pecadores
individualmente e a transformação social.
Uma visão distorcida do conceito de santidade
pode, em primeiro lugar, levar o crente a uma vida ascética, isolando-se do
convívio social e privando-se da amizade e da companhia dos não cristãos. Por
esta razão, o apóstolo Pedro, resistindo à ideia de evangelizar os gentios,
teve uma visão pela qual lhe veio o discernimento de que todos os homens,
judeus e gentios, estavam inclusos como alvo do plano salvífico divino (cf. At
9.10-20). Enviado pelo Espírito Santo, Pedro foi à casa de Cornélio e, ao
chegar, testemunhou: “Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou
mesmo aproximar-se a alguém de outra raça; mas Deus me demonstrou que a nenhum
homem considerasse comum ou imundo” (At 10.28).
Em segundo lugar, uma visão distorcida do
significado de ser santo pode fazer o cristão adotar uma conduta farisaica e
legalista tanto no relacionamento com Deus como no trato com os demais seres
humanos. A concepção farisaica de santidade implicava um afastamento das
pessoas a quem os fariseus e seus seguidores rotulavam de “pecadores” por terem
um comportamento reprovado, segundo os padrões oriundos de suas tradições e de
sua interpretação distorcida da torah. [38]
Por esta razão, Jesus, intencionalmente, violou as tradições dos fariseus,
tornando-se para eles motivo de escândalo, ao aproximar-se de todos os que, por
eles, eram discriminados. Um exemplo disso é visto nas passagens de Mt 9.11-13
e Mt 11.19, onde Jesus, por relacionar-se com os pecadores marginalizados,
visando levá-los ao arrependimento, é severamente censurado pelos fariseus.
Uma visão correta do conceito de santidade
contribui para que o crente adote um padrão de comportamento que seja
compatível com a conduta divina (cf. Mt 5.48). Ou seja, sua integridade de
caráter reflete a santidade divina (cf. 1Pe 1.14-16). O Espírito do mesmo Deus
que abomina o pecado também habita nos pecadores a quem Deus, por amor,
redimiu. A santidade de Deus não elimina a possibilidade dos pecadores se relacionarem
com ele.
O apóstolo Paulo, referindo-se à disciplina na
igreja, fala das relações entre os crentes e os não crentes nos seguintes
termos: “Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros;
refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo [...], pois,
neste caso, teríeis de sair do mundo”. Em seguida, acrescenta que as relações
que devem ser cortadas são com aquele que, “... dizendo-se irmão, for impuro,
ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse
tal, nem ainda comais” (1Co 5.9-11). Isto reforça a ideia de que santidade,
como integridade de caráter, não é razão para o ascetismo, auto-exclusão ou
alienação do convívio social ou para a recusa do exercício da plena cidadania.
Pelo contrário, é motivo para a presença ativa e influenciadora do crente na
vida de sua comunidade. Nesta perspectiva, Leonard Gopelt declara:
Os cristãos,
porém, devem imitar o Senhor – misturar-se com o povo e demonstrar na política,
economia e matrimônio [...] que agora Deus quer conduzir a todos a uma
existência humana íntegra. A
responsabilidade sócio-ética, motivada pelo amor de Deus, se integra na
comissão missionária. [39]
A missão da igreja no mundo assume dois
aspectos. O primeiro deles é que a missão tem caráter libertador. Tal
libertação é, antes de tudo, de natureza espiritual. Forças escravizadoras não
têm mais poder sobre os pecadores regenerados. O pecado e a morte não têm mais
os crentes sob o seu domínio (Rm 8.1-2). Embora ainda passíveis de pecado, os cristãos
não vivem mais, habitualmente, na prática do pecado, porque são filhos de Deus
(cf. 1Jo 3.8-10). Uma vez liberto dos efeitos eternos produzidos pelo pecado,
as maldições que a lei divina impunha sobre os impenitentes do judaísmo, tanto
judeus como prosélitos (cf. Gl 3.13; 4.4-7) não têm nenhum efeito no crente
professo. Seu estado de liberdade ratifica que o cristão está exonerado das
obrigações impostas pelo ritualismo escravizador do sistema sacerdotal judaico
já superado e posto sem efeito pela aliança da graça. O resultado disso é que,
em vez de ir ao templo para adorar, o cristão adora e serve a Deus em qualquer
lugar, “em espírito e em verdade” (cf. Jo 4.21-24). Os pecadores regenerados
são transformados em “santuário de Deus” (1Co 3.16-17) e o mundo em campo de
sua missão.
A missão cristã tem também caráter
transformador. No exercício da missão, a igreja exerce o papel simultâneo de
agência libertadora e transformadora do indivíduo e da sociedade, tanto no que
se refere ao caráter do regenerado como na mudança de valores culturais que
definem seu comportamento social. No seu estágio de santificação, o cristão
encara uma nova relação com Deus, com seu semelhante e com o mundo. Espera-se
que ele tenha mudado de mentalidade e, consequentemente, de conduta. Uma vez
regenerado, não mais viverá em conformidade com “este século” (sistema de
valores que define uma mentalidade e forma de vida opostas aos padrões
divinos), mas cultiva uma nova disposição mental e prossegue no processo de
“renovação interior” (2Co 4.16).
Habilitado pelo Espírito Santo através dos dons
ministeriais, o crente reconhece sua vocação no seio da igreja para o serviço
no mundo como testemunha e “embaixador em nome de Cristo”, visando à
reconciliação do mundo com Deus (cf. 2Co 5.18-20). Ele encara o mundo sob a
ótica de Deus, pois ele tem a “mente de Cristo”. A busca por engajar-se nos
empreendimentos divinos passa a ser o foco de suas preferências. Em vez de
afastar-se do mundo, reconhece que, como “luzeiro do mundo”, precisa manter sua
conduta irrepreensível e inculpável “no meio de uma geração pervertida e
corrupta” (cf. Fp 2.15), para exercer sua influência, infiltrando-se nos
diversos setores da sociedade. Presume-se que tal regenerado reconheça que, por
estar inserido na sociedade civil,
precisa ter uma vida pública e política, uma vez que vivencia os mesmos
problemas de sua comunidade, paga impostos, integra uma categoria profissional
e, eventualmente, um sindicato; vota e/ou é eleito, presta serviço militar e,
consequentemente, deve engaja-se nas lutas em defesa do direito, da justiça, da
verdade e da vida. Finalmente, reconhece que, como emissário de Jesus, exerce,
em seu contexto cultural, o duplo papel de testemunha e de agente
transformador.
Independentemente de como o cristão se relaciona
com o mundo, ele haverá de ser julgado segundo o critério das obras. As obras
identificam a real natureza humana, tanto do salvo como do perdido. Aquilo que
o homem semear nesta vida colherá para a eternidade (cf. Gl 6.7-8). A fé
salvadora haverá de ser confirmada ou anulada pelas obras, que haverão de ser
trazidas a juízo, no último dia. O julgamento segundo as obras é uma forma
através da qual Deus revelará em que e como cada pessoa terá investido sua
vida. A qualidade e a utilidade da vida serão medidas pelo que dela foi
produzido. As obras, que serão trazidas a juízo, são as que a fé ou a
incredulidade tiverem produzido.
Paulo, no capítulo 2 de sua Epístola aos
Efésios, enfatiza que a salvação está condicionada à fé. Tal salvação vem “não
de obras para que ninguém se glorie” (v. 9). Nenhum ser humano, por mais justo
que se considere, não conseguirá sua salvação em troca de suas obras, ainda que
apresente perante Deus, como em Mt 7.21-23, uma folha de serviços prestados em
nome de Jesus. Mas, por outro lado, o indivíduo que professa sua fé em Cristo
está obrigado a demonstrá-la por meio de suas obras, “pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para
que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Quando um cristão pratica o bem, está cumprindo
o propósito para o qual foi recriado (regenerado) em Cristo Jesus. Isto
significa literalmente que a regeneração de todo pecador o destina à prática
das obras que haverão de contribuir para o cumprimento do propósito salvífico
de Deus. O pecado desvia o homem do propósito de Deus, mas, ao ser redimido, o
homem é reconduzido ao destino para o qual foi criado, o que implica na prática
das obras preparadas de antemão para nós. Tais obras, indiscutivelmente, fazem
parte da missão cristã no mundo. A missão cristã não está limitada à
exclusividade da evangelização.
Durante vários séculos, a igreja reformada
espalhou no mundo a doutrina da salvação pela graça, por meio da fé, em
oposição à doutrina católica das obras. Inseriu também na sua prédica a
separação entre a igreja e o Estado como forma de combater a associação
política entre a Igreja Romana e a Autoridade Governamental. Como conseqüência,
a missão concentrou-se na evangelização, que, por sua vez, transformou-se num
evangelismo exacerbado, onde a fé em Jesus, como “único e suficiente salvador”
era a tônica da mensagem cristã. A prioridade da evangelização tornou-se
exclusividade e a omissão das obras transformou-se em alienação irresponsável.
Na segunda metade do século XX, o foco das
atenções na obra missionária passou a ser a ação social. Júlio Andrade
Ferreira, descrevendo esta dicotomia da evangelização, diz que “é fato que, na
obra de Evangelização, a Igreja cuidou mais da alma do que do corpo dos homens.
O resultado foi que houve uma reação conhecida por ‘Evangelho Social’ de
inspiração modernista que, há meio século teve influência”. [40] Prosseguindo sua linha de
raciocínio crítico sobre a missão eclesiástica, Júlio Ferreira diz: “O
entrosamento da mensagem espiritual da Igreja, em sua ação social dá-lhe
expressão mui significativa. É necessário que a Igreja jamais perca de vista
sua missão de proclamar com fidelidade o Evangelho e que, em sua expressão
social, não haja interesse algum, senão só puro amor”.[41]
O conceito de santidade, distorcido pela
pregação de um evangelho mutilado, fez com que o “abster-se das contaminações
do mundo” se tornasse o “afastar-se do mundo”, arrastando a igreja ao pecado da
omissão. As obras são a única forma de a igreja por em prática sua doutrina da
fé. Doutrina sem prática é mero discurso demagógico; e nisto o mundo é o maior
especialista. Uma vez que fé sem obras é morta, o crente só pode apresentar as
provas da legitimidade de sua fé através das obras. É por esta razão que as obras
serão o critério divino pelo qual seremos todos julgados.
Na parábola dos talentos, Jesus, segundo parece,
quis ensinar que o juízo final incluirá o julgamento individual dos cristãos
aos quais responsabilizou pelo exercício da missão. É um prestar contas da
mordomia que implica em ganhos e perdas. Provavelmente, o mesmo é dito por
Paulo, em 1Co 3.13-15: “Manifesta se tornará a obra de cada um, pois o dia a
demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada
um, o próprio fogo o provará. Se permanecer a obra de alguém [...] esse
receberá galardão; se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano [...]”. Com
certeza, a igreja é, neste contexto, o protagonista deste drama.
Dentre as obras de incumbência da igreja, as de
caráter humanitário também serão trazidas a juízo e servirão de “provas” da
real identidade dos salvos e perdidos. Em Mt 25.31-46, é apresentada uma
“amostra” das obras pelas quais o veredicto de cada um será pronunciado pelo
Supremo Juiz. Fome, sede, falta de abrigo, nudez, sofrer enfermidade ou prisão,
são necessidades humanas que requerem assistência. Inúmeros cristãos com
certeza sofrerão grande vexame ao ouvir: “Apartai-vos de mim, malditos, para o
fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me
destes de comer; tive sede e não me destes de beber; sendo forasteiro, não me
hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não
fostes ver-me” (vv. 41-43).
Tendo sido apresentada uma visão ampla do
significado de missão integral e da abrangência da atividade missionária da
igreja no mundo, a conclusão a que se pode chegar é que a igreja é responsável
por viabilizar a concretização do eterno desígnio de Deus para com a humanidade
e o mundo. A missão requer da igreja ações que tenham como objetivo a
restauração do homem e a transformação da sociedade, segundo os valores do
reino de Deus. Nisto consiste a dimensão política da missão eclesiástica que
passaremos a apresentar no capítulo seguinte.
ABSTRACT
Integral
Mission is the term used in the missiology to designate the function of the
Church in fulfilling the divine plan which consists in reaching the totality of
the ethnicities and each person integrally with the proclamation of the whole
gospel in such a way that it results in a double transformation: that of the
sinner as an individual and the social context in which he lives. The emphasis
of the mission rests on a threefold task: proclamation, discipleship and service. This implies a broader view of the traditional
concepts of the gospel, the kingdom of God, and the church. Aware of the
world's hostility to God, every Christian, as the ambassador of Christ, will
exercise his earthly citizenship according to the principles and values of
heavenly citizenship.
KEY WORDS: mission, kingdom, citizenship.
REFERÊNCIAS
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Editora, 1992.
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[3] PADILLA, René. Missão
integral. São Paulo: Temática, 1992, pp. 7, 8.