13 de fevereiro de 2019

O USO DA TEOLOGIA NA PREGAÇÃO EXPOSITIVA















José Vidigal Queirós [1]





RESUMO





INTRODUÇÃO

A exposição da Bíblia Sagrada através da pregação pública é a tarefa prioritária dos vocacionados para o ministério eclesiástico. Sendo a igreja a única detentora dos oráculos divinos, ela tem a incumbência de proclamar ao mundo a mensagem que lhe foi revelada, através da qual Deus se dá a conhecer - sua natureza, suas obras e seus desígnios - para que seu nome seja invocado em toda a terra. Mas as razões pelas quais a igreja alça sua voz profética têm suas raízes nas necessidades espirituais do ser humano. Isto implica dizer que a pregação expositiva é indispensavelmente útil para atender às demandas da natureza espiritual humana.
Mas, qual há de ser o conteúdo da pregação e qual a fonte deste conteúdo? Indubitavelmente, a resposta é: o conteúdo é a Palavra de Deus e sua fonte é a Escritura. O pressuposto básico para o estudo e a pregação da doutrina cristã, em geral, é que Bíblia é a palavra de Deus revelada na medida da necessidade humana. Portanto, para que a Palavra de Deus seja comunicada com exatidão, clareza e eficácia, a pregação expositiva é o meio de se obter isto.
Por caracterizar-se como expositiva, a pregação há de ser o meio pelo qual o conteúdo da revelação divina, as Sagradas Escrituras, passará por um processo de análise exegética. O resultado final, presume-se, não é outro senão a essência bíblico-teológica da mensagem que o autor do texto sagrado comunicou aos receptores originais de sua mensagem.
Uma vez que a teologia bíblica emana da exegese, o conteúdo da pregação é indiscutivelmente teológico em toda a sua essência. Esta é, portanto, a proposição a que neste estudo se destina e que se busca comprovar.

      1.       O fundamento da pregação bíblico-teológica

Suprir as necessidades espirituais humanas constitui-se na razão fundamental da pregação expositiva. Além disso, há objetivos específicos que a pregação da Palavra de Deus deve atingir. O primeiro a ser citado, consiste no fato de que a pregação expositiva é um meio de evangelização. Argumentando sobre este objetivo, Liefeld afirma que “quanto mais as pessoas sabem sobre a doutrina e a vida cristã quando se convertem, mais adiantadas estarão nos primeiros tempos de vida cristã”. (LIEFEL, Walter L., 1988, p. 20).
Outro objetivo específico da pregação expositiva consiste em declarar os desígnios de Deus para a igreja. O erro mais cometido com respeito a isto consiste em procurar a vontade divina em versículos isolados, algumas vezes, por acaso. Descobrir e declarar a vontade de Deus requer o conhecimento do seu caráter e como ele executou sua vontade ao longo da história. Portanto, a exposição da Escritura, de forma fiel e contínua há de equipar o povo de Deus a tomar decisões baseadas no nosso conhecimento adquirido sobre as diversas maneiras como Deus age.
Do ponto de vista divino, a pergunta pela necessidade da pregação expositiva é respondida pelas Sagradas Escrituras, através do conceito que lhe é atribuído e das finalidades para as quais elas foram designadas. O apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo, fez uma declaração na qual ele subentende que as Escrituras são o registro divinamente inspirado de tudo que Deus revelou para aperfeiçoar individualmente os membros da igreja em seu caráter e conduta, visando sua habilitação à prática de toda boa obra, referente ao exercício do ministério cristão (2Tm 3.16-17).
Revelação implica um revelador e um destinatário. A Escritura é uma mensagem da qual Deus é o autor e o homem, o receptor e comunicador aos demais. O discurso profético há de ser a voz de Deus através do homem como seu porta-vez. Segundo Vanhoozer, “a própria Bíblia descreve Deus como o agente do discurso: aquele cuja Palavra chega a Israel por meio da lei e dos profetas, e então ao mundo na pessoa de Jesus Cristo e de seu evangelho”. (VANHOOZER, Kevin J. Teologia Primeira: Deus, escritura e hermenêutica. São Paulo: Shedd Publicações, 2016, p. 41.).
Na tentativa de descrever a relação entre Deus e a Escritura, Vanhoozer assevera:
Afirmo que o melhor meio de considerar Deus e a Escritura juntos é reconhecer Deus como o agente comunicativo e a Escritura como sua ação comunicativa. A virtude desse constructo, no que tange à teologia primeira, jaz na tese implícita de que ninguém é capaz de discursar a respeito de Deus à parte da Escritura; e tampouco fazer justiça à Escritura de forma abstrata a partir de sua relação com Deus. Se a Bíblia é um tipo de ação comunicativa de Deus, segue-se que ao usar a Escritura não se lida apenas com uma informação a respeito de Deus; entra-se em contato com o próprio Deus – com Deus em ação comunicativa. [2]

A pergunta sobre o que é a Bíblia, Graeme Goldsworthy responde, expondo argumentos sobre três intitulações enfáticas: (1) “A Bíblia é a Palavra do único Deus” - uma abordagem sobre a unicidade e a singularidade de Deus como base para uma concepção correta de sua autoridade suprema; (2) “A Bíblia é a única Palavra de Deus” - a singularidade e a unidade da Bíblia resulta da unicidade divina; (3) “A Bíblia é a Palavra de Deus sobre o único caminho da salvação” - uma abordagem bíblico-teológica a respeito da soteriologia, visando afirmar a convicção cristã a respeito do único caminho de salvação. [3]
Indiscutivelmente, tais conceitos denotam axiomas de cunho teológico dos quais derivam o conteúdo doutrinário da pregação. Deve-se levar em conta que, durante o progresso da revelação, a palavra de Deus está na boca de um profeta, em forma humana e é, ao mesmo tempo, revelação de Deus e do homem diante de Deus. Isto faz com que, de acordo com Shreiner, “a palavra de Deus, transmitida pelos profetas e confirmada na vida do povo como transmissão de uma mensagem e efeito de uma força, transforma-se em uma categoria teológica capaz de compreender e explicar outros lados e intervenções de Deus...”. (SHREINER, J. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 26). Isto torna necessária a exposição metodológica das Escrituras, cuja interpretação, impreterivelmente, resultará da exegese bíblica.
A questão que emerge da necessidade de uma interpretação fiel do texto sagrado jamais deve ser negligenciada quando se trata de pregação expositiva. O risco da subjetividade substituir o conteúdo real da mensagem bíblica não é dos menores, uma vez que todo pregador já está munido de uma confissão de fé adotada como seu referencial doutrinário à luz da qual busca interpretar as Sagradas Escrituras. A aplicação de regras e diretrizes é o fator decisivo quando se trata da fidelidade do expositor às Escrituras. Por esta razão, antes de funcionar como expositor, o pregador funciona como exegeta.
Segundo os renomados hermeneutas, Köstenberger e Patterson, ao encarar uma perícope como objeto da exegese o intérprete deve considerar que o texto das Escrituras, “não é neutro, isto é, passível de uma grande variedade de interpretações, todas reivindicando ser uma leitura igualmente válida de determinada passagem [...]”. Eles são do parecer que “ texto não é, tampouco, autônomo [...] é, antes, um produto planejado e moldado por autor particular e exige, nesse sentido, uma interpretação cuidadosa e respeitosa”. (KÖSTENBERGER, Andreas J.; PATTERSON, Richard D. Convite à Interpretação Bíblica: a tríade hermenêutica, história, literatura e teologia. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 58.).

      2.       Teologia a partir da exegese bíblica

Qualquer que seja o conceito de teologia, no contexto da fé cristã, este há de ser essencialmente bíblico. Teologia (do grego Theos = Deus e Logos = palavra, proferida a viva voz, que expressa uma concepção ou ideia; discurso), etimologicamente, significa o discurso sobre Deus. Apresentando uma definição de teologia, John Piper postula: “O assunto da teologia é Deus, o Criador, o Senhor vivo, conforme ele é no seu relacionamento com tudo quanto não é ele mesmo – inclusive nós mesmos [...], porque a Bíblia se centraliza em Deus governando, julgando e salvando a humanidade”. [4]
De modo específico, referindo-se à Teologia Bíblica, ele a define como sendo “a disciplina que sintetiza as descobertas da exegese de modo temático e também histórico”. (PIPER, J. 2012, p. 74.). Este conceito atribui à teologia a conotação de que a mesma é a substância da mensagem do texto bíblico explorado exegeticamente. Isto torna evidente o fato de que toda interpretação exegética da Bíblia é teológica e tem como destino servir como matéria do sermão.
Mas surge uma questão: Como a teologia e a leitura bíblica se correlacionam entre si? Em sua resposta, Piper declara:
Em primeiro lugar: a teologia como atividade corretamente entendida é mesmo a leitura da Bíblia, conforme ela deve ser, e a leitura da Bíblia, corretamente entendida é mesmo a teologia, conforme ela deve ser. Em segundo lugar: a teologia como depósito e recurso pode acrescentar muita coisa à leitura da Bíblia por parte do crente individual, do grupo de estudo, da congregação que estuda junto e da igreja no seu sentido mais amplo. [5]

 Assim sendo, a atividade teológica cristã não é tarefa exclusivamente acadêmica; não diz respeito a uma versão racional do conhecimento de todas as coisas relacionadas à fé. Nestes termos, todo leitor da Bíblia, quando interpreta e aplica o conteúdo da mensagem lida, exercita sua habilidade da busca e apropriação do conhecimento da revelação divina. Goldsworthy considera que “todo cristão é um intérprete; todo cristão deve ser um teólogo bíblico”; e, com base nesta premissa, declara que “o pregador é um intérprete da Escritura, como é todo cristão que lê a Bíblia e procura dar sentido à aplicação da Bíblia à nossa vida diária”. [6]
Em resposta à pergunta sobre os motivos pelos quais os cristãos comuns devem ocupar-se com a teologia, Piper apresenta quatro razões: (1) A teologia mostra a todos nós como devemos abordar a Bíblia; (2) A teologia coloca diante de nós a substância da Bíblia; (3) A teologia ajuda a todos nós a mantermos o ponto de vista da Bíblia; (4) A teologia nos deixa prevenidos, de antemão, contra todos os modos heréticos de entender a Bíblia. [7] Indiscutivelmente, a teologia é indispensável à pregação expositiva.
A teologia se torna necessária em razão da necessidade religiosa humana. A prática da religião tem se desenvolvido desde os primórdios da história em virtude da aspiração transcendental do homem. Através da pregação expositiva das Escrituras, a igreja age como canal de transcendência para o homem. Portanto,  uma concepção correta de Deus é indispensável para a garantia de uma relação ajustada entre a criatura e o seu Criador. Assim sendo, religião e teologia estão interligadas e são interdependentes. Nesta perspectiva, a teologia é uma ciência a serviço do homem para que, através dela, ele venha a compreender a ciência revelada de Deus. Este é o ponto no qual a teologia e a ciência se interceptam. Henry Thiessen, interpreta esta interceptação da seguinte forma:
A relação entre teologia e religião é a de efeitos, em esferas diferentes, produzidas pelas mesmas causas. No campo do pensamento sistemático, os fatos que se referem a Deus e Suas relações com o universo levam à teologia; na esfera da vida individual e coletiva, eles levam à religião. Em outras palavras, na teologia um homem organiza seus pensamentos com referência a Deus e ao universo, e na religião ele expressa, em atitudes e ações, os efeitos que esses pensamentos produziram nele. [8]

A questão suscitada por esta discussão demanda por um método de interpretação das Escrituras. Uma vez que os livros sagrados foram escritos em um contexto histórico-cultural remoto, a busca pela interpretação fiel da mensagem bíblica, que possa ser aplicada ao contexto do leitor atual, deu vazão ao surgimento da Hermenêutica e da Exegese como ciências da interpretação a serviço da homilética. Alexandre Jr é de parecer que “exegese e homilética são disciplinas que se complementam como partes de um mesmo todo”. (ALEXANDRE Jr, Manoel. Exegese do Novo Testamento: um guia básico ara o estudo do texto bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 381.). Estes foram os recursos metodológicos utilizados pelos eruditos com o objetivo específico de descobrir, entender e expressar com precisão e clareza todo o conteúdo da revelação divina, registrado pelos hagiógrafos, de tal forma que sua mensagem satisfaça plenamente às exigências do ministério eclesiástico, no que se refere ao exercício do seu ofício profético, em especial, a pregação expositiva. Concebendo a teologia como uma ciência, Hodge afirma:
A Bíblia é um sistema teológico não mais que a natureza é um sistema químico ou mecânico. Encontramos na natureza os fatos que o químico ou o filósofo mecânico tem a examinar, e à luz deles poder verificar as leis pelas quais são determinados. E assim a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relação natural umas com as outras. [9]

O método teológico de exposição das Escrituras deriva diretamente de uma análise exegética do texto sagrado. Mas, como isto pode ser feito e por que? Há três razões pelas quais isso acontece. A primeira consiste no fato de que é necessário descobrir o significado da revelação, ou seja, a exposição das Escrituras requer uma interpretação fiel obtida através da exegese, cujo processo de análise culmina na emissão do real significado bíblico-teológico do texto. A segunda razão reside na necessidade de se compreender o significado da revelação. Isto ocorre porque a aplicação prática requer inteligibilidade da mensagem pregada. Portanto, a exposição homilética do texto interpretado só se torna eficazmente inteligível aos ouvintes, quando o conteúdo é didaticamente sistematizado. A terceira razão consiste na aplicação do significado da revelação à prática. A sistematização didática de qualquer conteúdo bíblico há de sempre ocorrer através da especificação temática do conteúdo teológico resultante da exegese. Este não é outro, senão, o pensamento teológico do texto.
Isto implica que todo resultado de uma análise exegética do texto sagrado destinado à pregação é essencialmente bíblico-teológico. Por conseguinte, isto significa dizer que a teologia (o discurso sobre Deus) é a substância da pregação expositiva. Para um entendimento mais claro, é necessário que se defina o que é teologia bíblica. Goldsworthy, propõe como conceito de Teologia Bíblica a definição de Geerhardus Vos, como sendo “aquele ramo da teologia exegética que lida com o processo da auto-revelação de Deus registrada na Bíblia”. [10] Continuando sua definição, ele afirma:
Do ponto de vista do pregador evangélico, teologia bíblica envolve a busca pelo grande quadro, a visão geral da revelação bíblica. Uma característica da natureza da revelação bíblica é que ela conta uma história, em vez de apresentar princípios atemporais abstratos. A Bíblia contém, realmente, muitos princípios atemporais, mas não de forma abstrata. Eles são dados em um contexto histórico de revelação progressiva. Se permitimos que a Bíblia conte a sua própria história, achamos um todo significativo e coerente. [11]

No percurso da história, a igreja cometeu erros e acertos no que se refere à teologia que culminou na Reforma, que consistiu no retorno às origens, no que se refere à ortodoxia cristã. Por esta razão, a igreja atual construiu seu perfil a partir do seu contexto histórico, no qual a teologia emergiu. O pano de fundo para a teologia bíblica não deve ser outro, senão, o retorno da Reforma à doutrina da sola scriptura (somente a Escritura). A teologia bíblica, impreterivelmente, deve ser sempre uma expressão fiel da revelação. Portanto, a submissão à autoridade suprema da Bíblia é condição sine qua non para que as pressuposições de todo intérprete tenham base na revelação da Bíblia Sagrada.

       3.        O conteúdo teológico da pregação expositiva

Liefeld, argumentando sobre os objetivos e o conteúdo da pregação expositiva, pressupõe o uso da teologia como uma alternativa. Em sua concepção, “quem se põe a pensar sobre os objetivos da pregação expositiva, naturalmente deve pensar em ensinar doutrina ou teologia”. (LIEFELD, p. 22). Para confirmar tal concepção, ele declara:
O exemplo mais comum provavelmente é a recapitulação de verdades que encontramos nas epístolas paulinas. Constante tarefa do teólogo sistemático é sintetizar as verdades bíblicas e relacioná-las de maneira compreensível com estruturas de pensamento contemporâneas, e a teologia deve sempre os manter informados e direcionar nossa pregação, mas a melhor maneira de transmitir a verdade divina nem sempre é através de proposições. [12]

Embora ele não descarte o valor da Teologia Sistemática, reconhece que, devido à metodologia empregada pelo teólogo na estruturação do pensamento, ela não favorece a exposição exaustiva de um texto bíblico, escolhido pelo pregador como fonte da mensagem. Ele propõe que a alternativa seja a Teologia Bíblica. Goldsworthy compreende que a teologia que é bíblica tem o seguinte perfil:
Visto que a teologia bíblica é uma disciplina descritiva, seu método é ditado principalmente pelo modelo da própria Bíblia. Uma teologia verdadeiramente bíblica aceita o ponto de vista bíblico sobre a revelação. Contudo, há diferentes maneiras de lidar com o material [...]. O ponto de partida metodológico mais apropriado é o evangelho, porque a pessoa de Jesus é proclamada ali como a expressão final e mais plena da revelação de Deus sobre o seu reino. [13]

A necessidade da teologia na pregação expositiva é justificada pela qualidade que a pregação deve ter. A boa pregação há de ser aquela que transmite com fidelidade a mensagem central de um texto bíblico. Mais que isso, a comunicação desta mensagem deve ser feita com o uso da estrutura e dos detalhes apropriados à passagem e ao contexto e objetivo do sermão. Ela há de satisfazer às reais necessidades dos ouvintes de maneira consistente, sobe a égide do Espírito Santo. Portanto, para ser inteligível, o sermão expositivo deverá ser produto de uma exegese eficaz que culmine na formulação teológica do pensamento que o autor do texto propôs-se a comunicar.
A função do pregador consiste em comunicar com clareza e objetividade a mensagem extraída das Sagradas Escrituras. O conteúdo da mensagem não é outro senão aquilo que resultou de seu trabalho em busca de uma interpretação fiel e precisa do texto sagrado. Reconhecendo que a Escritura é conteúdo da revelação divina, então, tudo que nela está contido é exatamente aquilo que Deus quer que o homem saiba a respeito dele. Mas, especificamente, qual deve ser o conhecimento do qual todo ser humano tanto necessita para manter uma relação ajustada com Deus? O conhecimento revelado de Deus consiste na resposta às questões fundamentais que atendem às demandas transcendentais do homem.
A primeira é a pergunta sobre a possibilidade de Deus ser conhecido.  A revelação é um fenômeno espiritual e exige fé. Sem ela não se pode conhecer a Deus. Diante de tal concepção, temos uma questão a levantar: A fé é um conhecimento? O fato de que o crente consegue saber sobre Deus por meio da fé não quer dizer que a fé seja algo que resulta de uma instrução irracional, isto é, de um cego pressentimento da obscuridade. A fé não nos mostra Deus racionalmente, mas nos faz concebê-lo razoavelmente.
A fé também consiste num ato vital de nossa faculdade mental e, portanto, é um conhecimento desenvolvido pela percepção espiritual estimulada pela revelação divina. Andamos por fé e não por vista (2Co 5.7). Desta forma, tudo que conhecemos por meio da fé não se pode obter pelo empirismo que se prende aos fenômenos sensoriais. A fé, segundo nos diz o autor de Hebreus, é a base de sustentação das coisas que esperamos e argumento convincente das coisas que não vemos (Hb 11.1).
O autor da Epístola aos Hebreus escreve: "De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus, creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam" (Hb. 11:6). É certo que o escritor não está querendo aqui convencer os leitores de que Deus existe e sim, explicar o conceito de fé. Portanto, a pergunta por Deus tem sua resposta na revelação, teologicamente sistematizada para facilitar o entendimento por parte dos destinatários da mensagem proclamada.
A revelação bíblica consiste na resposta divina às questões existenciais do homem. Ao pregar, o mensageiro de Deus responde a tais questões através da exposição sistematizada das Escrituras. Todo o conteúdo da Bíblia resume-se na resposta às seguintes questões de abordagem do teólogo: (a) O que é Deus? - a resposta traz o conhecimento ontológico do ser divino; (b) O Deus faz? - conhecimento que responde sobre a atividade divina no universo em prol de toda a criação; (c) Como Deus se comporta? - conhecimento necessário a uma compreensão do caráter e da conduta divina no seu relacionamento com suas criaturas e, de um modo especial, com o homem; (d) Qual o eterno desígnio de Deus? - conhecimento que responde sobre o propósito soteriológico divino.
Todo o conteúdo da Bíblia é, sem dúvida, a resposta de Deus através da auto-revelação a respeito de tudo que todo ser humano mais busca para suprir as demandas de sua natureza limitada e para a satisfação plena do seu ser. A tarefa do expositor da Escritura consiste, portanto, em explicar e aplicar à vida humana o conteúdo da revelação divina como resposta às demandas do homem. Pregar expositivamente é pregar teologicamente. Teologia e pregação expositiva são inseparáveis; uma está a serviço da outra.

CONCLUSÃO

A pregação expositiva assume uma natureza bíblico-teológica e as bases de seu fundamento constitui-se nas demandas e aspirações transcendentais da natureza limitada humana. O texto sagrado, que serve de fonte do conteúdo da pregação, emana da revelação de Deus. O discurso divino flui por meio do porta-voz humano, o pregador expositivo, como instrumento de comunicação da verdade divina de forma inteligível e, para tanto, a interpretação das Sagradas Escrituras, tão necessária à exposição precisa e fiel, há de ser obtida pelo pregador, fazendo uso da hermenêutica e da exegese.
Para uma aplicação da mensagem divina à vida cristã, o sermão nasce como o recurso retórico, ou ainda, um esboço estruturado do conteúdo teológico oriundo da revelação divina, registrada nas Sagradas Escrituras. Assim, a teologia bíblica é substância do sermão e fonte que supre o ministério da pregação. Não há exposição bíblica que não seja teológica e não há teologia, essencialmente bíblica, que não seja útil ao ministério da pregação.

ABSTRACT


This study is based on the assumption that biblical preaching is undoubtedly an exposition of the sacred text, the content of which is extracted directly from the Bible through a process of exegetical analysis. Thus, the meaning of the text of the Scriptures is redeemed and expressed in a current language - Biblical Theology - intended for public exposure, aiming at the edification of the church and the evangelization of sinners in general. In this way, the use of theology is imperative to expository preaching. Once biblical theology emanates from exegesis, the final result of the process of analysis of the sacred text is to redeem the original meaning of the divine revelation content that will be used by the preacher during the exposition of the Word of God.



KEY WORDS: Biblical Theology, Scriptures, preaching, exposition.


REFERÊNCIAS

ALEXANDRE Jr, Manoel. Exegese do Novo Testamento: um guia básico ara o estudo do texto bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2016.

GOLDSWORTHY, Graeme. Pregando toda a bíblia como escritura cristã. São Paulo: Fiel, 2013.

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001.

KÖSTENBERGER, Andreas J.; PATTERSON, Richard D. Convite à Interpretação Bíblica: a tríade hermenêutica, história, literatura e teologia. São Paulo: Vida Nova, 2015.

LIEFELD, Walter L. Exposição do Novo Testamento: do texto ao sermão. São Paulo: Vida Nova, 1988.

PIPER, John. Hermenêutica: uma abordagem interdisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2012.

SHREINER, J. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004.

THIESSEN, Henry C. Palestras em Teologia Sistemática. São Paulo: Batista Regular, 2014.

VANHOOZER, Kevin J. Teologia Primeira: Deus, escritura e hermenêutica. São Paulo: Shedd Publicações, 2016.



[1] O autor é Bacharel em Teologia, pós-graduado (lato sensu) em Teologia Bíblica; pós-graduado em A Arte da Pregação Expositiva pela FATEBE - Faculdade Teológica Batista Equatorial, Belém-PA, e graduado em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú. Atualmente é docente do Seminário Teológico Batista em São Luís, onde leciona as disciplinas de Teologia Sistemática e Exegese no Antigo Testamento
.
[2]  VANHOOZER, Kevin J. op. cit. p. 41.
[3] GOLDSWORTHY, Graeme. Pregando toda a bíblia como escritura cristã. São Paulo: Fiel, 2013, pp. 47-52.
[4] PIPER, John. Hermenêutica: uma abordagem interdisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p. 72.
[5]  PIPER, John. Op. Cit. p. 81.
[6]  GOLDSWORTHY, Graeme. Op. Cit. p. 28.
[7]  PIPER, John. Op. Cit. pp. 85-94.
[8] THIESSEN, Henry C. Palestras em Teologia Sistemática. São Paulo: Batista Regular, 2014, p. 7.
[9] HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1.
[10] GOLDSWORTHY, Graeme. Op. Cit. p. 61.
[11] GOLDSWORTHY, Graeme. Op. Cit. p. 61.
[12] LIEFELD, Walter L. Exposição do Novo Testamento: do texto ao sermão. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 22.
[13] GOLDSWORTHY, G. Op. Cit. p. 65.

8 de fevereiro de 2019

ELEMENTOS CONCEPTUAIS DA MISSÃO INTEGRAL







 



José Vidigal Queirós[1]




RESUMO

Missão Integral é o termo usado na missiologia para designar a função da Igreja no cumprimento do desígnio dsivino que consiste em alcançar a totalidade das etnias e cada pessoa integralmente com a proclamação do evangelho todo de tal forma que isso resulte numa dupla transformação: a do pecador como indivíduo e a do contexto social em que ele vive. A ênfase da missão repousa sobre numa tríplice tarefa: proclamação, discipulado e serviço. Isto implica numa visão mais ampla dos conceitos tradicionais de evangelho, reino de Deus e igreja. Consciente da hostilidade do mundo contra Deus, todo cristão, como embaixador de Cristo, haverá de exercer sua cidadania terrena segundo os princípios e valores da cidadania celeste.


PALAVRAS-CHAVE: missão, reino, cidadania.


INTRODUÇÃO

Este estudo consiste numa abordagem conceptual de missão integral firmada no pressuposto de que o exercício da missio Dei[2] através da igreja atual demanda por uma concepção do evangelho e do reino de Deus, que transcenda os parâmetros da polarização estabelecida através do antagonismo entre a teologia reformada rígida e hermética e o universalismo arminiano flexível e aberto. Missão Integral é o tema teológico discutido na missiologia contemporânea que demanda maior profundidade de estudo que os demais temas doutrinários já explorados exaustivamente. é a expressão mais apropriada para descrever a amplitude a identidade e o papel da igreja no mundo das nações.
A concepção bíblico-teológica de Missão Integral adquiriu, nas últimas décadas, uma significação mais ampla. Convencionalmente, Missão Integral consiste na tarefa de levar o evangelho todo a todos os homens (etnias) e ao homem todo (indivíduo). Tal conceito tem apoio não somente no propósito universal de Deus como também na unidade da raça humana inserida num contexto multifacetado que demanda por respostas de Deus às suas aspirações mais amplas e às suas necessidades mais prementes.

1 Os pilares da missão

René Padilla, um dos oradores do Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suíça, em 1974, considerou que “o contexto no qual se evangeliza é tão importante quanto qualquer outra coisa, ao se decidir acerca do significado do evangelho para aquele mesmo contexto”.[3] Isto significa que a evangelização não pode estar alienada da realidade. Por esta razão, a Missão Integral da Igreja deve construir seu alicerce sobre três pilares: (1) o compromisso com todo o desígnio de Deus; (2) o alcance de cada ser humano em sua totalidade; (3) a transformação social do contexto em que a pessoa vive.
O conceito etimológico de evangelho (boas novas) denota uma mensagem estritamente contextualizada. O mensageiro é portador de uma notícia para seu povo, sua geração e o mundo de sua época. Assim, Jesus tinha uma mensagem atual para seu povo e o significado de tal mensagem aplicava-se ao seu contexto histórico-cultural imediato. Ele fazia cumprir o desígnio de Deus proclamado pelos profetas. Jesus tinha consciência de que a mensagem divina tinha de adequar-se ao kairós[4] designado pelo próprio Deus. Mas, por outro lado, segundo sua perspectiva escatológica, considerou também que o conteúdo da mensagem da salvação e da vinda do reino divino perpassaria a história para ir além das gerações, até os confins da terra e até a consumação dos séculos.
Nesta perspectiva, presume-se que, em sua dimensão ultracultural, a igreja busque concretizar o propósito divino através da aplicação do evangelho todo a cada pessoa individualmente e a cada indivíduo na sua integralidade. Por outro lado, a contextualização do evangelho requer uma adequação ou direcionamento de sua mensagem às necessidades de seus destinatários. Isto torna necessária uma releitura das Escrituras, visando a descoberta da resposta de Deus às demandas do mundo contemporâneo. Urge, portanto, que se opte por uma teologia renovada, orientada sob a égide do Espírito de Deus, que supra as aspirações transcendentais do homem da era pós-moderna. Neste sentido, “o papel da teologia é interpretar e esclarecer a Palavra de Deus com vistas à obediência a Jesus Cristo, na situação histórica. Em outras palavras, a teologia é um instrumento para a contextualização do evangelho”. [5] O grande risco que se corre nesta operação consiste não só no afunilamento das verdades eternas com perda da amplitude da visão profética da igreja, mas também na aplicação seletiva de um evangelho mutilado. René Padilla postula que a contextualização do evangelho deriva de uma teologia renovada que esteja pautada nos seguintes princípios:
(a) “A base da teologia é a Palavra de Deus”;
(b) “O contexto da teologia é a situação histórica concreta”;
(c) “O propósito da teologia é a obediência ao Senhor Jesus Cristo”. [6]

Tal concepção expressa que a teologia nunca poderá prescindir de sua práxis pastoral que, por sua vez, substancializa-se na encarnação da Palavra de Deus, para viabilizar a inculturação do evangelho na realidade social onde a igreja está inserida. Desta forma, a igreja jamais deve situar-se à margem de sua própria cultura. Alienação cultural é fator que obsta a missão eclesiástica e impede a formação de igrejas autóctones responsáveis pela transformação social do seu contexto imediato. A contextualização do evangelho haverá de ser um fluir da graça de Deus através da igreja que o encarna para aplicá-lo integralmente à situação histórica de sua geração, no seu ambiente cultural.
Em seu pronunciamento no congresso de Lausanne, Billy Graham declarou: “A fé sem obras é morta. A fonte da salvação é a graça. O terreno é a expiação. O meio é a fé. A evidência são as obras”. [7] Evangelização não pode estar dissociada da responsabilidade social. A ação social é a aliada inseparável da evangelização. Mas aqui há o risco de se cometer três erros, como disse o evangelista Billy Graham: “O primeiro é negar que tenhamos qualquer responsabilidade social como cristãos [...]. O segundo erro é permitir que a preocupação de ordem social absorva todo o nosso tempo, tornando-se nossa única missão [...]. O terceiro erro consiste na identificação do Evangelho com algum programa político ou cultural particular”. [8]
A concepção teológica de missão integral está atrelada à natureza da igreja. Além da visão concernente à sua natureza missionária, é de se convir que a vocação eclesiástica aponte para a inteireza da mensagem sob os diversos aspectos de sua abrangência. Para tanto, "os fundamentos bíblicos para a missão abrangem a totalidade da palavra de Deus". [9]
A identidade missionária da igreja é designada por sua natureza apostólica. Como disse Johannes B. Blauw, “não existe nenhuma outra igreja senão a igreja enviada ao mundo e não há outra missão a não ser a da Igreja de Cristo”. [10] A apostolicidade é o mais relevante atributo missiológico da igreja. Dele deriva o conceito de missão expresso por Warneck:

Por missão cristã entendemos a atividade conjunta da cristandade, buscando a implantação e a organização da igreja cristã entre os não-cristãos. Tal atividade denomina-se missão, pois se baseia na força do envio do chefe da igreja cristã, é realizada por emissários (apóstolos, missionários) e seu objetivo será atingido assim que não seja mais necessário outro envio”. [11]

John Stott conceitua missão nos seguintes termos:

Missão quer dizer a atividade divina que emerge da própria natureza de Deus. Ora, o Deus vivo da Bíblia é um Deus que envia; eis aí, portanto, o significado da palavra. Ele enviou seus profetas a Israel, e enviou o seu Filho ao mundo. Este, por sua vez, enviou os apóstolos, os setenta e a igreja. Enviou também o Espírito Santo à igreja e hoje o envia aos nossos corações. Assim, a missão da igreja resulta da própria missão de Deus, e nela tem de ser modelada. ‘Assim como o Pai me enviou’, disse Jesus, ‘também vos envio a vós’ (Jo 20.21; cf. 17.18).[12]

O conceito de missão eclesiástica deriva do atributo do apostolado da igreja. De acordo com 1Pe 2.9, a igreja tem uma identidade e uma vocação missionária designados pelos termos “geração eleita”, “sacerdócio real” e “nação santa”. A igreja constitui-se na geração dos eleitos de Deus, a genos eklekton, [13] identificada como uma comunidade de regenerados selecionados por Deus. Ela é a segunda raça, a nova criação, a nova humanidade, onde estão congregados todos os filhos de Deus, os nascidos por ação do próprio Deus. Eles se constituem, portanto, nos membros componentes da corte divina. A eleição destes regenerados implica  vocação. Deus os gerou e os elegeu para um serviço sagrado: a missão.
O exercício da missão requer autoridade e, para isso, a igreja se constitui num basileion hierateuma, [14] isto é, na comunidade sacerdotal do reino divino. A expressão “sacerdócio real” ou “sacerdócio régio” é termo usado para descrever a realeza ou o grau de nobreza da igreja como o corpo de sacerdotes da família real (de Deus). O termo denota o exercício de um ofício com duplo aspecto: um sacerdotal e outro real. Através do primeiro, os santos agem como instrumentos da mediação de Cristo, viabilizando a reconciliação entre o mundo e Deus. Por meio do segundo, eles se apresentam frente ao mundo como legítimos representantes do reino divino, para chamá-lo ao arrependimento e à obediência a Cristo, o Soberano Árbitro do universo.
No contexto da missão, a igreja é uma comunidade de santos constituídos em nação, a ethnos hagion. [15] O termo ethnos denota um sentido político, designando a igreja como uma nação entre as nações, distinta das demais pelo atributo de santidade que lhe confere o termo grego hagion.  Isto expressa as relações de aliança que existiam entre Deus e Israel (cf. Ex 19.6). Por ter fracassado em guardar tais relações, Israel deixou de ser nacionalmente povo de Deus. Em seu lugar, os santos, tanto judeus como gentios inseridos na igreja, organizam a nova nação herdeira das promessas e prerrogativas que a nova aliança absorve da antiga.
Sob a ótica divina, a igreja porta-se no mundo como a nação prometida que substitui Israel na aliança de Deus com Abraão (cf. Ex 19.5-6.) para canalizar a bênção divina ao mundo (cf. Gn 12.1-3). Esta nova nação age em missão no mundo, não tendo cidadania terrena permanente, pois, como súditos do reino divino, são “peregrinos e forasteiros” (1Pe 2.11), cuja pátria está nos céus, segundo a teologia de Paulo. A expressão usada por Pedro “povo de propriedade exclusiva” (1Pe 2.9) denota a ideia de uma aquisição por resgate.
Neste sentido, a igreja é povo de possessão divina, liberto do domínio das forças do mal que operam no mundo e transportado para o reino do Filho amado de Deus. A implicação disso é que todos os santos são constituídos em cidadãos do reino divino estabelecido por Cristo aqui na terra. Por isso, os cristãos vivem e agem no mundo segundo os valores do reino celeste. São agentes humanos sob ordem divina que exercem sua nova cidadania através da missão de promover, expandir e consolidar o reino de Deus entre os homens. Como súditos do reino e “embaixadores de Cristo” (2Co 5.20), no mundo das nações, os santos são porta-vozes oficiais de Deus e de Cristo, incumbidos da missão de reconciliar o mundo com Deus, proclamando “as grandezas daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).
Isto nos traz a convicção de que a missão é divina, não humana. Embora o termo “missão” não conste nas Sagradas Escrituras, seu conceito está fundamentado na Palavra de Deus. Missão é termo essencialmente teológico empregado pela missiologia para designar a atividade de Deus no cumprimento do seu eterno desígnio. Missão está radicada na natureza do próprio Deus. A atividade criadora, preservadora e redentora de Deus exprime a missão divina. Especificamente, na história da salvação, as Escrituras apresentam Deus como um ser que envia. Os patriarcas, os profetas, o Messias, o Espírito Santo, os apóstolos, e por fim a igreja, foram enviados em missão ao mundo. Na teologia paulina, esse mesmo Deus que é “sobre todos”, também “está em todos” com o propósito de agir “por meio de todos” (Ef 4.6). Este agir divino por meio do seu povo é missão divina no mundo.
O conceito de missão torna-se mais evidente a partir da oração sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18); e do comissionamento dos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Isto estabelece o elo entre a missão de Jesus e a missão da igreja. Esta declaração de Jesus traz consigo algumas implicações teológicas que, em seguida, são apresentadas.
Deus é o sujeito da missão. Sua missão consiste na restauração de toda a criação (o homem e o universo) atingida fatalmente pelo pecado e subjugada pelas hostes do mal. A execução de sua missão ocorre pelo envio de seu Filho ao mundo em uma missão salvadora e, por meio do Filho, o Pai envia a igreja. Em decorrência deste fato, a missão da igreja fundamenta-se na autoridade soberana divina. O retorno do Logos divino à destra do Pai constituiu-se em sua exaltação como o Soberano Árbitro do Mundo (cf. Mt 28.18). A proclamação do evangelho não pode excluir o anúncio de que o mundo agora tem um novo chefe. Como sujeito da missão, o Pai, por meio do Filho, requisita o serviço de sua igreja e a envia ao mundo, o mesmo ao qual ele enviou o Filho e o qual Ele ama com amor imensurável.
Por esta razão, o ministério da igreja deve estar pautado no ministério de Jesus. As razões e o propósito da missão de Cristo e da igreja são respectivamente os mesmos. Por conseguinte, a missão de Jesus é parâmetro e modelo para a missão da igreja. [16] Isto quer dizer que cada cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi o apóstolo do Pai. Em decorrência deste fato, a igreja se constitui numa comunidade apostólica, tendo como referencial aquele que a envia. Uma vez que a missão de Jesus tomou forma e concretude em seu tríplice ofício de profeta, sacerdote e rei, a missão da igreja também o será. Segundo Charles Van Engen, “se a igreja se perceber continuadora do ministério de Cristo no mundo, ela o fará em relação à função tríplice de Cristo.[17]
A igreja é uma comunidade messiânica que assume seu ofício profético ao exercer sua tarefa proclamadora do evangelho do reino. Ao agir como a comunidade mediadora, ministrando os serviços do culto e levando o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela o faz por meio de seu ofício sacerdotal. Por ter recebido as “chaves do reino dos céus” e promover em nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e Deus, a igreja é nomeada como a “embaixada” do reino de Cristo no mundo (cf. 2Co 5.19-20), legitimando assim o exercício de seu ofício real – reino sacerdotal – com o fim de executar as obras da realeza divina designadas por Cristo. Citado por Van Engen, Colin Williams declara:

Pode-se ver com facilidade que esses três ofícios estão intimamente relacionados às marcas da igreja na tradição da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores], onde a Palavra é verdadeiramente pregada (profeta), os sacramentos são divinamente ministrados (sacerdote) e a santa disciplina é mantida (rei).[18]

Para que a missão da igreja seja pautada pela missão de Jesus é necessário que cada cristão tenha sua vida modela por Jesus. O Novo Testamento define o padrão de vida cristã com base na personalidade de Cristo. Uma vez que todo verdadeiro cristão teoricamente tem a mente de Cristo (cf. 1Co 2.6), consequentemente, sua mente deve estar ocupada com as coisas que ocupam a mete de Deus (cf. Cl 3.2). Sua conduta e forma de pensar jamais devem estar em conformidade com os padrões deste século (cf. Rm 12.1-2).
O que se deduz desse tríplice ofício apostólico da igreja é que ela, por meio de sua voz e ação profética, clama por justiça e a põe em prática na sua comunidade. Por meio de sua ação sacerdotal, marca sua presença sacramental e reconciliadora, em seu contexto social, onde as pessoas a encaram como a comunidade mediadora da graça divina por vê-la oferecer-lhes a salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo que nela habita e do qual ela é o corpo. Finalmente, por meio de seu ofício régio, a igreja assume a incumbência de implementar e preservar os valores do reino de Deus na cultura, em todas as instâncias do poder e em todos os níveis das relações humanas. Para que seja bem-sucedida no fiel cumprimento de sua missão, a igreja precisa de pessoas treinadas, que estejam moral, intelectual e espiritualmente habilitadas (cf Ef 4.11-13).
Finalmente, sendo Jesus modelo para sua igreja, é imprescindível que a missão eclesiástica esteja centralizada na promoção de seu reino no mundo. O reino foi para Jesus, como também o é para a igreja, o tema central de sua prédica e causa objetiva de sua encarnação. Desta forma, a igreja apresenta-se ao mundo como a comunidade sacramental que assinala a presença do Rei que nela extensivamente se encarnou.

2 O mundo como campo da missão e de conflito

Diante de tal desafio com o qual se depara o cristão, é mister que se levante a questão sobre o seu papel em sua relação com o mundo. Independente dos conceitos bíblicos que queiramos adotar para a palavra “mundo”, a igreja tem uma relação com ele. Mundo pode significar a terra onde o homem habita (cf. Sl 24.1); ou ainda, toda a humanidade (cf. Jo 3.16); e, por último, pode ter o sentido de um sistema de valores contrários aos valores do reino de Deus, isto é, “um sistema no qual o mal está organizado contra Deus”.[19] Este é o conceito adotado aqui.
A razão pela qual o mal no mundo é corporativo e está organizado contra Deus é porque ele sofre a influência direta das “forças espirituais do mal” que, segundo o apóstolo Paulo, compõem-se de “principados e potestades, [...] dominadores deste mundo tenebroso” (Ef 6.12). Todo aquele que estiver comprometido com este sistema é considerado inimigo de Deus, e conseqüentemente, aliado do diabo (cf. Tg 4.4). Satanás é o “deus deste século” (2Co 4.4) e, como disse Jesus, também é “o príncipe deste mundo” (Jo 16.11).
Na tentação a Jesus, no deserto, Satanás, depois de mostrar-lhe “todos os reinos deste mundo”, fez-lhe uma proposta: “dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser. Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua” (Lc 4.5-7). Isto parece evidenciar que, por traz de todo sistema econômico e político que promove os interesses humanos, estão as forças espirituais do mal em sua ação manipuladora.
A humanidade está sob o domínio do “império das trevas”, pois “o mundo inteiro jaz no maligno” (1Jo 5.19). A evangelização dos gentios tem por finalidade “convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus” (At 26.18). Somente os regenerados foram libertos do império das trevas e transportados para o reino do Filho amado de Deus (cf. Cl 1.13). Desta forma, há duas realidades, dois níveis de poder, dois reinos: o reino dos céus e os reinos deste mundo.
Martinho Lutero dividia a humanidade em dois grupos: os que pertencem respectivamente ao reino de Cristo e ao reino do mundo. Significa dizer que todo verdadeiro cristão vive em um mundo hostil onde age como ministro da reconciliação. Isto implica numa concepção cristã de dupla cidadania a serem exercidas por cada cristão individualmente.  Júlio A. Ferreira descreve a concepção de Lutero como existindo dois reinos e dois regimes da seguinte forma:

Há dois reinos e, por isso, temos de dividir os filhos de Adão em dois grupos: os que pertencem ao Reino de Cristo, e os que pertencem ao Reino do Mundo. O primeiro compreende os fiéis, isto é, os que crêem em Cristo; o segundo, a todos que não são cristãos.[20]

A conclusão a que se pode chegar é que a humanidade não redimida foi “capturada” e encontra-se como refém dos poderes destruidores do mal. A igreja é uma agência libertadora destinada à salvação do indivíduo e à transformação da sociedade. Seu ministério tem efeito transformador, pois ela é instrumento de Deus para a transformação dos “filhos das trevas” em “filhos da luz”, para enviá-los ao mundo como agentes promotores de mudanças em todas as áreas da vida humana, implementando os valores do reino no seu contexto. Portanto, esta concepção torna evidente que o êxito da missão da igreja estará dependendo de uma visão correta, por parte de cada cristão, do que significa ser santo e de uma visão correta do significado da missão no mundo.
Na encarnação, o destino do Filho de Deus foi o mundo de Deus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). O reino de Deus se fez presente na pessoa de Jesus, mas de forma incompleta. Ainda vivemos na esperança da salvação e o novo céu e a nova terra ainda estão por vir. Este éon é o tempo da tolerância longânime de Deus que não quer que “nenhum se perca, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9).
Arrependimento implica uma reestruturação de valores e uma reorientação da vida e personalidade humanas. Ele aponta para a dimensão social do reino e se caracteriza pelo retorno a Deus, ao propósito de Deus e a uma nova vida no mundo. “Quando a evangelização não leva a sério o arrependimento, é porque não leva a sério o mundo, e, quando não leva a sério o mundo, tampouco leva Deus a sério”.[21]
A presença de Cristo no mundo dos homens assinala que Deus está ativo na história para fazer cumprir os seus desígnios. Portanto, “Jesus se coloca na linha do cumprimento, não só porque cumpre o que tinha sido prometido e que, portanto, era esperado por Israel, mas também no sentido mais profundo de que nEle se cumpre o evento definitivo da história de Deus com os homens”.[22] Neste sentido, o arrependimento tem uma conotação escatológica, uma vez que ele se constitui no marco que delimita e separa a velha da nova dispensação. A era do arrependimento que encerrará a história impõe um novo padrão de vida que resulta do retorno do homem não só a Deus, mas também ao seu próximo. Presume-se também que, como consequência, o arrependimento produz uma reorientação total da vida no mundo como sinal de transformação.
O Cristo preexistente e encarnado no homem Jesus veio ao mundo dos homens, não ao mundo ideal, mas ao mundo tal como ele é. Jesus enviou sua igreja “como ele foi enviado” ao mundo geográfico da história, o mundo que, por causa do pecado e a influência das hostes do mal, tornou-se hostil a Deus. A paz entre o homem e Deus é o resultado esperado da missão (cf. 2Co 5.18-19). Segundo Mateus, Cristo, no exercício de sua missão, realizou três tarefas fundamentais: proclamação – “pregando o evangelho do reino”; discipulado – “ensinando nas sinagogas”;  diakonia[23] – “curando toda sorte de doenças e enfermidades”. Sua motivação residia em sua compaixão ao “ver as multidões [...] aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (cf. Mt 9.35-36).
As necessidades humanas, das quais as maiores vítimas eram os pobres e os oprimidos, foram o motivo principal para que Jesus encarnasse o espírito e o papel do Ebed Yahweh (Servo de Javé). A igreja de Jesus é uma igreja serva. Como disse Pedro Arana, “A igreja, assim como o Senhor Jesus, deve ser uma igreja do caminho e não do balcão. Ela não pode permanecer como espectadora da história: tem de descer para onde se travam as lutas reais dos homens. Ali se encontram as necessidades, que são o chamado premente da igreja para que possa cumprir sua missão”.[24] A concepção do mundo como campo da missão divina deriva da interpretação que Jesus deu respectivamente à parábola do semeador e à do joio e do trigo. Nesta última, Jesus descreve o aspecto escatológico do reino, ao ensinar que os frutos da semeadura divina através de Cristo e da igreja haverão de ser colhidos na consumação dos séculos.
Os escritos do Novo Testamento testificam de uma situação conflituosa em que vivem os santos com o mundo. O conflito se estabelece a partir da queda do homem na qual Satanás teve participação. O gestor do mal, a “antiga serpente”, que se manifesta como “sedutor de todo o mundo” (Ap 12.9; 20.22), cujos intentos são opostos aos desígnios de Deus, é rotulado como “adversário” e/ou “inimigo” (Mt 13.39; Lc 10.19) de Deus e de seu povo. O plano da redenção tem seu início na promessa do Redentor, conforme o capítulo 3 do livro de Gênesis (cf. Gn 3.15). Esta passagem descreve a resolução divina de estabelecer uma “inimizade” entre a “serpente”, com toda a sua “descendência”, e o “descendente” da mulher, que, segundo Paulo, é Cristo (cf. Gl 4.4). Deus estabeleceu no universo criado um ambiente de hostilidade, estado de guerra, contra as forças do mal. Os sistemas de ordem político-econômica e as estruturas sociais estão, segundo o Novo Testamento, manipulados pelos poderes destruidores do mal.
O Apocalipse, numa linguagem enigmática, narra o drama do embate entre a igreja e o Estado Romano. O Estado impunha-se, através do imperador, como deus e senhor. Os cristãos consideravam tal atitude como blasfêmia, pois aviltava a Deus, constituindo-se num desafio frontal à soberania divina de Cristo. A postura dos cristãos com respeito a César desafiava a honra do imperador e as estruturas sociais do império. O não reconhecimento das prerrogativas divinas atribuídas a César era sinal evidente da convicção da divindade e da soberania de Cristo, a quem os cristãos confessavam como “o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 17.4). Para o governo romano, os seguidores do crucificado eram reacionários resistentes ao Estado, dignos de serem exterminados com o fim de garantir a paz e a ordem nas províncias onde os cristãos marcavam sua presença.
Em passagens como Rm 16.20 e 1Co 15.25-27, Paulo dá ênfase ao cumprimento, por meio de Cristo, da promessa divina de que o descendente da mulher haveria de “esmagar a cabeça da serpente” (cf. Gn 3.15), desferindo assim o último golpe sobre Satanás, e dando fim ao conflito espiritual com o triunfo de Cristo e da igreja.
O conflito com o mundo tem um aspecto ideológico, isto é, deflagra-se no campo das ideias, dos conceitos, nas formas de expressão do pensamento humano. “O deus deste século” que cegou o entendimento dos incrédulos (cf. 2Co 4.4) é o mesmo que induz os homens ao forjamento das ideologias anti-deus que predominam no mundo da pós-modernidade. O “príncipe da potestade do ar” é o espírito que atua nos “filhos da desobediência”, os quais seguem o curso deste mundo (cf. Ef 2.2), onde os que dele fazem parte repudiam os valores espirituais, dando evasão à vontade da carne, tornando-se por natureza “filhos da ira”.
Quem é o mentor deste século? Quem é e “onde está o inquiridor [25] deste século?” (cf. 1Co 1.20). Prosseguindo em seu questionamento, Paulo deduz que Deus tornou “louca” [26] toda a sabedoria deste mundo, uma vez que o homem desconhece por completo os desígnios do Criador (cf. 1Co 1.21; 2.14). Por meio do evangelho, Cristo é revelado como sabedoria divina, a qual os homens, tanto judeus como gentios, repudiam por considerar absurda a mensagem do evangelho. Mas, paradoxalmente, esta é a maneira pela qual a verdadeira fé se manifesta e pela qual os homens são salvos (cf. 1Co 1.21-24).
Na teologia de Paulo, o resgate dos que pertencem a Cristo é obra que se concretiza na história por meio da pregação, cujo conteúdo exprime a sabedoria divina, a qual Deus “preordenou desde a eternidade para a nossa glória” (1Co 2.6-7). Como consequência, nós que “não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito de Deus” (1Co 2.12) temos agora “a mente de Cristo” (1Co 2.6). O resultado é que todos os que foram “ressuscitados com Cristo” devem buscar “as coisas lá do alto, onde Cristo vive” e jamais pensar “nas coisas que são aqui da terra”. O “espírito do mundo”, denominado pelo Novo Testamento como “príncipe da potestade do ar”, é o responsável pelo estabelecimento da ordem atual das coisas no mundo como também o autor das ideologias anticristãs que predominam entre os homens. Desta forma, ele dita a mente deste século e dirige o curso do presente éon (cf. Ef 2.2).
O conflito da igreja com o mundo assume também um caráter ético. A impiedade e a perversão humana obstruem a justiça (cf. Rm 1.18). Tal conduta manifesta o caráter degenerativo humano. A hostilidade a Deus por parte dos homens decorre do fato de que, “tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21). Tal rebeldia atingiu o grau máximo ao optar pela preferência humana em prestar culto à própria criação (cf. Rm 1.23). Esta atitude consiste em ato de humilhação e de agressão direta à santidade divina. “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia” (Rm 1.24), a “paixões infames” (Rm 1.26) e também “a uma disposição mental reprovável para praticarem coisas inconvenientes” (Rm 1.28). A hostilidade dos pecadores é o motivo pelo qual Deus os tem como “inimigos” com os quais busca a reconciliação por meio do seu Filho, Jesus Cristo (cf. Rm 5.10-11). Todos os não reconciliados vivem moralmente segundo o “pendor da carne, que é inimizade contra Deus” (cf Rm 8.7). A ética deste mundo consiste em um sistema de valores antagônicos aos valores do reino de Deus. Tais valores são identificados como “concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (Jo 2.15-17). Portanto, “a amizade do mundo é inimiga de Deus” e todo “aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4). Além de tornar-se um inimigo de Deus cada amante do mundo também se constitui num aliado do diabo, um súdito de Satanás, pois “o mundo inteiro jaz no maligno” (1Co 5.19). A ação missionária da igreja implica não somente na proclamação das boas novas do reino, mas também no embate contra o sistema maligno que impera no mundo e corrompe tanto o indivíduo como a sociedade. Em seu confronto com o mundo, segundo opina Padilla,

A igreja tem somente duas alternativas: ou limitar sua ação ao aspecto religioso da vida, satisfeita com um cristianismo que assimila os valores da cultura e se adapta ao mundo, negando o evangelho; ou concebendo-se como uma comunidade para a qual não há mais que um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo, e consequentemente entrar em conflito com o mundo. [27]

A vocação profética da igreja demanda compromisso com a pregação do evangelho do reino de Deus através da qual a igreja encarna o reino em meio aos reinos deste mundo. Em consequência disso, o conflito é inevitável. Ao encarnar extensivamente a pessoa do Cristo glorificado, a igreja é desafiada a enfrentar o condicionamento do mundo e seus poderes de destruição. A igreja jamais deve romper com suas raízes de origem, o caminho da cruz, uma vez que ela deriva sua razão de existir de sua aliança com Jesus Cristo, cuja rejeição aos condicionamentos mundanos do seu tempo o levou à morte de cruz. A desordem estabelecida no mundo por causa do pecado é essencialmente favorável e estimuladora ao surgimento dos problemas sociais em todas as áreas do relacionamento e da vida humana. Diante disso, necessário é que se investigue qual a relação entre a evangelização e a responsabilidade social da igreja.

3 Evangelização e responsabilidade social cristã

Em sua tentativa de discernir a relação entre evangelização e responsabilidade social, David J. Bosh declara que o segredo está na “distinção entre dois mandatos diferentes: o espiritual e o social. O primeiro refere-se à incumbência de anunciar a boa nova da salvação através de Jesus Cristo; o segundo conclama os cristãos a participar responsavelmente da sociedade humana, incluindo o trabalho em prol do bem-estar humano e da justiça”.[28] Isto pode ser comprovado pelo apostolado de Jesus apontado pelos teólogos como paradigma da missão eclesiástica.
Ao proclamar o evangelho, Jesus tanto anunciava a chegada do reino tão esperado pelos seus patrícios como também conclamava todos ao arrependimento e a crerem nele como meio de tomarem parte no reino. O estabelecimento do reino de Deus era o motivo central do ministério de Jesus. [29] Além da proclamação em massa do evangelho, Jesus lidava com pequenos grupos, tentando formar uma equipe de discípulos através do ensino nas sinagogas, interpretando o que as Escrituras diziam sobre ele e o momento histórico em que seu povo vivia na expectativa do reino escatológico anunciado pelos profetas. A evangelização do mundo seria uma tarefa missionária a ser realizada por seus discípulos posteriormente. [30]
A proclamação pública do evangelho do reino e o ensino das Escrituras nas sinagogas, não eram suficientes para convencer os judeus de sua geração. Seus contemporâneos precisavam de algo mais: de uma concepção correta tanto do significado do reino de Deus como também da pessoa do Messias. Portanto, era necessário que, em seu ministério, Jesus vivesse na prática os valores do reino, manifestando os sinais de sua implementação no mundo.
Cristo constatou que seu povo estava oprimido por forças políticas e econômicas poderosas que o dominavam sob a ameaça de um massacre. Roma subjugava reinos e nações pelo poder da espada e pelo terror da cruz. A vida de um judeu estava nas mãos do procurador romano, que tinha o poder de decisão sobre quem devia viver ou morrer. Impostos pesados, cobrados por Roma através dos publicanos, espoliavam o povo, fazendo multiplicar-se o número de indigentes que, marginalizados pela sociedade corrompida pelo dinheiro, estavam à beira do desespero.
A casta sacerdotal, corrompida pela avareza, mercadejava a religião, aceitava suborno e subornava. Fizeram da “Casa de Oração” um “covil de salteadores” (Lc 19.46). O crescimento da pobreza fazia crescer também o número de enfermos e lunáticos. Especialmente, os pobres, os marginalizados que viviam “na região da sombra da morte”, eram a prioridade de Jesus, o Messias tão esperado, que havia de trazer-lhes o reino, a “paz sem fim [...], o juízo e a justiça” (cf. Is 9.1-7). O serviço aos pobres, famintos, enfermos e aflitos fez do Cristo o servo do seu próprio povo. É como disse o apóstolo Pedro ao Centurião Cornélio: “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder, o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele” (At 10.38). Seu ministério, segundo o profeta Isaías, seria marcado pela evangelização e serviço em favor dos pobres, cativos e oprimidos (cf. Lc 4.17-21).
Movido de íntima e profunda compaixão, Jesus se dedicou com afinco às multidões de homens, mulheres e crianças carentes. Eram pessoas necessitadas de cuidados especiais. Precisavam urgentemente de alguém que os amasse, que os fizesse elevar sua autoestima e sentirem-se como seres humanos. O estado de total desamparo e abandono em que se encontravam fez que Jesus os considerasse “como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36).

 3.1 O aspecto humanitário da missão eclesiástica

A dimensão social do evangelho proclamado por Jesus deriva da esperança escatológica que fora alimentada pela pregação dos profetas do Antigo Testamento. A ênfase na prática da justiça e na defesa dos desafortunados era a tônica dos arautos de Javé cujas expectativas teriam sua concretude por ocasião da vinda do Messias. Os desequilíbrios sociais seriam substituídos pela equidade a prevalecer no regime a ser estabelecido pela nova ordem do reino messiânico. Discriminações e privilégios teriam seu fim e a igualdade de todos perante Deus haveria de ser reconhecida.
Analisando o contexto socioeconômico em que viviam os judeus contemporâneos de Jesus, torna-se evidente que a mulher tinha desvantagem em relação ao homem. E. Morin depõe que “Flávio Josefo escreveu, em seu livro Contra Apião: ‘A mulher, diz a Lei, é inferior ao homem em todas as coisas. Ela deve obedecer não para se humilhar, mas para ser dirigida, pois foi ao homem que Deus deu o poder’ (2, 24)”. [31] Prosseguindo, ele acrescenta que a seguinte prece era recomendada aos homens: “Louvado seja Deus que não me criou mulher”. [32]
Sendo o homem, segundo a cultura hebraica, o provedor e o protetor do lar, o casamento era a alternativa mais viável para a sobrevivência da mulher. Tornar-se viúva era para a mulher a pior de todas as desgraças, principalmente se ela não tivesse um filho varão. Pode ter sido por esta razão que Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim. Ressuscitar seu filho seria devolver-lhe a alegria de viver, eliminando o medo de cair na penúria. Provavelmente, pelas mesmas razões, o Senhor Jesus ressuscitou Lázaro, cujas irmãs, ainda solteiras e provavelmente órfãs de pai e mãe, tinham o irmão como o sustentador do lar. A cura de um cego, um leproso ou um coxo, mais que alívio do sofrimento, era uma forma adotada por Jesus para a transformação de um mendigo em trabalhador. Indubitavelmente, a proclamação do evangelho do reino implica atos de cidadania.
As Escrituras consideram não só a gravidade dos problemas sociais como também definem princípios e mandamentos que expressam a vontade de Deus para com o homem, no seu contexto sociocultural. O Velho Testamento expressa alguns mandamentos que apontam diretrizes que o povo de Deus deveria seguir quanto às questões relacionadas à pobreza e ao trabalho. No que se refere a tais questões, a legislação mosaica tinha o propósito de levar os filhos de Israel à prática da justiça. Moisés ensinou que a pobreza jamais seria erradicada da terra; por esta razão, os abastados deveriam ser generosos e compassivos com os necessitados (cf. Dt 15.7-11). Aos incapacitados para o trabalho estava assegurado o direito ao sustento integral (cf. Lv 25.35-37).
Os ensinos de Jesus vão além do que Moisés ensinou aos filhos de Israel. Jesus enfatiza que os pobres têm prioridade no reino de Deus e que aos mesmos, além de socorro, devemos prestar honrarias e hospitalidade. Por toda a Escritura, encontramos sinais da preocupação de Deus com os problemas sociais. O Novo Testamento enfatiza a responsabilidade dos cristãos perante a família, a sociedade, o Estado e o mundo, tanto no que se refere à ética como também à vida econômica, a mordomia dos bens e a aquisição de riquezas. Os problemas sociais de um povo afetam a vida da igreja e o contexto onde está inserida. Portanto, a missão da igreja no mundo não pode estar desarticulada dos problemas sociais que comprometem o padrão de vida e a existência humanas. Referindo-se à vida cristã no mundo, Manfred Grellert declara:

Ser cristão significa assumir um papel responsável perante o mundo de Deus. É recusar abdicá-lo ao diabo e às hostes do mal. É sofrer com o mundo como ele é, por causa do sonho como o mundo deveria ser, e como Deus o quer. Não é mais possível conceber a vida cristã hoje sem uma preocupação com ecologia, recursos naturais limitados, guerra [...], refugiados, e a pobreza que avilta os céus [...]. [33]

O caráter humanitário da missão fundamenta-se em razões pertinentes, dentre as quais duas requerem atenção muito especial por parte da igreja atualmente: a desvalorização da vida e a necessidade do resgate da cidadania. Percebe-se, mesmo numa leitura superficial, que a Bíblia registra a preocupação de Deus com a salvação do homem e a criação de um novo céu e uma nova terra. O que move Deus a salvar o mundo não é outra coisa senão a situação em que se encontra a humanidade após a queda. Além da desordem social, o pecado produziu na sociedade um sistema de valores que se opõe à vontade e ao propósito de Deus para com sua criação. O grande desafio da igreja consiste em, através de suas obras, tornar-se “a luz do mundo”, denunciando e confrontando os sistemas que imperam no mundo, mentalizando a perversidade nas gerações.
Por revelação divina, Paulo “discerniu que os principados e potestades do mal estavam entrincheirados em estruturas ideológicas que oprimiam os homens”. [34] Desta forma, o mundo é o campo onde a igreja entra em disputa contra as potestades do mal pela conquista da liberdade dos cativos subjugados por este sistema. Para este combate, a igreja faz uso das armas espirituais, “poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co 10.4-5). Esta visão apocalíptica do kosmos é o cenário que nos faz compreender o significado e a dimensão da obra redentora de Cristo.
A proclamação do evangelho do reino propunha trazer os homens ao arrependimento e submetê-los à soberania de Jesus Cristo como condição sem a qual a salvação não seria alcançada. O kerygma [35] apostólico suscitava de certo modo um embate entre Cristo e César, entre a igreja e o mundo, mas, por outro lado, produzia de forma paradoxal a formação de comunidades cristãs que vieram a compreender que a submissão às autoridades terrenas era uma expressão de sua sujeição ao próprio Cristo como soberano do universo. O exercício da cidadania terrena haveria de estar pautada pelos princípios e valores da cidadania celeste.
O mundo atual caracteriza-se pela formação de uma sociedade onde a inversão de valores degrada a vida, avilta o caráter e o homem se animaliza. Neste contexto, a igreja age como instrumento de Deus para humanizar cada indivíduo, restaurando nele a imagem divina e preparando-o para tornar-se um cidadão da “pátria celestial”. Somente através do exercício consciente de sua cidadania terrena, o cristão há de aprender e desenvolver pela práxis a defesa da justiça, e fazer uso responsável de sua liberdade. Ele se engajará nas lutas em defesa dos injustiçados, dos desamparados, dos que não têm voz (cf. Pv 31.8), aceitando correr o risco de sofrer o martírio. Este é o sentido, o preço e o propósito humanitário da missão cristã no mundo.
Mas aqui há o perigo de uma confusão que pode surgir. Em relação ao propósito salvífico divino, a ação de cidadania não é a prioridade absoluta. Em alguns lugares do mundo, missão se confunde com obras sociais. Rajendran argumenta que “o aumento na assistência social precisa ser assistido e um equilíbrio deve ser buscado, ou então as missões poderão tornar-se organizações meramente sociais”. [36] É bem verdade que o descuido pode levar ao desvio do propósito. A missão eclesiástica necessita hoje de uma atenção especial quanto ao desenvolvimento de sua práxis. Assim pensando, Rajendran reconhece que “[...] há uma necessidade de [...] as missões continuarem reiterando as suas metas, visões e o seu modus operandi a fim de manter em foco o objetivo final – levar as pessoas para Cristo [...]”.[37]

3.2 O alicerce do humanitarismo cristão

A ação social da igreja fundamenta-se em, pelo menos, três pontos de apoio: nos princípios éticos que definem o padrão de vida humana, nos princípios que estabelecem a relação entre o cristão e o mundo, e no critério divino pelo qual seremos julgados. A atuação dos cristãos no mundo é definida não somente pelo seu senso de vocação, mas também pelos princípios éticos que adotam em sua conduta. As Escrituras destacam três mensagens de caráter ético que, em seu bojo, incorporam os princípios determinados por Deus e que definem o padrão de comportamento humano: o decálogo, os discursos dos profetas e o sermão de Jesus pronunciado no monte.
Deus é a fonte de toda exigência moral. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é um ser relacional. Os mandamentos divinos, expressos no decálogo, definem com muita clareza os parâmetros que medem e julgam os atos do indivíduo no seu relacionamento com Deus, com a família e com o seu semelhante. Quando Deus proíbe matar, ele estabelece o direito individual à vida; quando proíbe furtar, estabelece o direito individual à posse igualitária da propriedade; quando proíbe dar falso testemunho contra o próximo, estabelece o direito individual à integridade moral e protege a reputação do justo; quando Deus proíbe o adultério, está protegendo o cônjuge, o matrimônio e a família. Quando Deus ordena que os filhos honrem seus pais, estabelece a ordem na família, onde os pais exercem autoridade e os filhos a eles obedecem. Estes são princípios éticos divinos universais que estabelecem a ordem social.
No discurso dos profetas, o indivíduo aprendia ter consciência de sua responsabilidade social. A sua religião seria de todo inútil sem a prática da justiça, da beneficência e da humildade. Os profetas atacaram com ênfase: a) a injustiça econômica manifestada na exploração do trabalhador, na ganância e desonestidade dos comerciantes e dos “latifundiários”; b) a má conduta no campo jurídico-político evidenciada através da corrupção generalizada e de uma legislação injusta; c) a situação de opressão em que a população pobre vivia sob o jugo escravizador dos detentores da fortuna e do poder. Israel deveria ter sido exemplo para o mundo. A missão de Israel no mundo das nações consistia em servir de canal da bênção divina para todas as famílias da terra; e só teria significado e valor pelo cumprimento da vontade de Deus expressa nos princípios e valores éticos expressos na lei divina.
Na pregação de Jesus, o sermão do monte constitui-se no seu código ético. Neste discurso, Jesus exprime o caráter do indivíduo que faz parte do reino de Deus. Este é pobre de espírito, manso, tem fome e sede de justiça, é misericordioso, puro de coração e pacificador.
Duas figuras são usadas por Jesus para explicar e exemplificar a ação do cristão na sociedade: o sal e a luz. Como “sal da terra”, os cristãos são responsáveis por desempenharem três funções: a) preservar os valores morais e espirituais que podem evitar que sua comunidade “apodreça” no pecado; b) dar sabor e significado à vida, a razão de nossa existência; c) desenvolver sua propriedade terapêutica, ministrando no mundo a cura para as feridas da alma que o pecado causa. Portanto, assim como o sal precisa infiltrar-se na substância onde atua, os cristãos necessitam envolver-se na vida do seu país.
Como “luz do mundo”, cada cristão precisa viver de tal forma que suas ações e conduta sejam exemplares e notadas por todos. Seus atos de justiça farão que sua vida brilhe, sirva de modelo e guia para os perdidos. As obras de um cristão, em sua atuação direta no mundo, haverão de ser motivo para que o mundo glorifique a Deus (cf Mt 5.16). A vida cristã haverá de ser transparente aos olhos do mundo e um referencial para o mundo. O cristão será visto e se destacará por sua atividade na vida comunitária. Não pode adotar uma postura omissa e reclusa, mas participativa, envolvendo-se nas causas e reivindicações justas do seu povo. Como instrumento de Deus, exercerá influência, desempenhando com santidade, amor e responsabilidade, seu papel de agente transformador. Tudo isso vem mostrar que a igreja, no exercício de sua missão, constitui-se em uma agência do reino dos céus com um propósito duplo: a salvação dos pecadores individualmente e a transformação social.
Uma visão distorcida do conceito de santidade pode, em primeiro lugar, levar o crente a uma vida ascética, isolando-se do convívio social e privando-se da amizade e da companhia dos não cristãos. Por esta razão, o apóstolo Pedro, resistindo à ideia de evangelizar os gentios, teve uma visão pela qual lhe veio o discernimento de que todos os homens, judeus e gentios, estavam inclusos como alvo do plano salvífico divino (cf. At 9.10-20). Enviado pelo Espírito Santo, Pedro foi à casa de Cornélio e, ao chegar, testemunhou: “Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça; mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo” (At 10.28).
Em segundo lugar, uma visão distorcida do significado de ser santo pode fazer o cristão adotar uma conduta farisaica e legalista tanto no relacionamento com Deus como no trato com os demais seres humanos. A concepção farisaica de santidade implicava um afastamento das pessoas a quem os fariseus e seus seguidores rotulavam de “pecadores” por terem um comportamento reprovado, segundo os padrões oriundos de suas tradições e de sua interpretação distorcida da torah. [38] Por esta razão, Jesus, intencionalmente, violou as tradições dos fariseus, tornando-se para eles motivo de escândalo, ao aproximar-se de todos os que, por eles, eram discriminados. Um exemplo disso é visto nas passagens de Mt 9.11-13 e Mt 11.19, onde Jesus, por relacionar-se com os pecadores marginalizados, visando levá-los ao arrependimento, é severamente censurado pelos fariseus.
Uma visão correta do conceito de santidade contribui para que o crente adote um padrão de comportamento que seja compatível com a conduta divina (cf. Mt 5.48). Ou seja, sua integridade de caráter reflete a santidade divina (cf. 1Pe 1.14-16). O Espírito do mesmo Deus que abomina o pecado também habita nos pecadores a quem Deus, por amor, redimiu. A santidade de Deus não elimina a possibilidade dos pecadores se relacionarem com ele.
O apóstolo Paulo, referindo-se à disciplina na igreja, fala das relações entre os crentes e os não crentes nos seguintes termos: “Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros; refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo [...], pois, neste caso, teríeis de sair do mundo”. Em seguida, acrescenta que as relações que devem ser cortadas são com aquele que, “... dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais” (1Co 5.9-11). Isto reforça a ideia de que santidade, como integridade de caráter, não é razão para o ascetismo, auto-exclusão ou alienação do convívio social ou para a recusa do exercício da plena cidadania. Pelo contrário, é motivo para a presença ativa e influenciadora do crente na vida de sua comunidade. Nesta perspectiva, Leonard Gopelt declara:

Os cristãos, porém, devem imitar o Senhor – misturar-se com o povo e demonstrar na política, economia e matrimônio [...] que agora Deus quer conduzir a todos a uma existência humana íntegra. A responsabilidade sócio-ética, motivada pelo amor de Deus, se integra na comissão missionária. [39]

A missão da igreja no mundo assume dois aspectos. O primeiro deles é que a missão tem caráter libertador. Tal libertação é, antes de tudo, de natureza espiritual. Forças escravizadoras não têm mais poder sobre os pecadores regenerados. O pecado e a morte não têm mais os crentes sob o seu domínio (Rm 8.1-2). Embora ainda passíveis de pecado, os cristãos não vivem mais, habitualmente, na prática do pecado, porque são filhos de Deus (cf. 1Jo 3.8-10). Uma vez liberto dos efeitos eternos produzidos pelo pecado, as maldições que a lei divina impunha sobre os impenitentes do judaísmo, tanto judeus como prosélitos (cf. Gl 3.13; 4.4-7) não têm nenhum efeito no crente professo. Seu estado de liberdade ratifica que o cristão está exonerado das obrigações impostas pelo ritualismo escravizador do sistema sacerdotal judaico já superado e posto sem efeito pela aliança da graça. O resultado disso é que, em vez de ir ao templo para adorar, o cristão adora e serve a Deus em qualquer lugar, “em espírito e em verdade” (cf. Jo 4.21-24). Os pecadores regenerados são transformados em “santuário de Deus” (1Co 3.16-17) e o mundo em campo de sua missão.
A missão cristã tem também caráter transformador. No exercício da missão, a igreja exerce o papel simultâneo de agência libertadora e transformadora do indivíduo e da sociedade, tanto no que se refere ao caráter do regenerado como na mudança de valores culturais que definem seu comportamento social. No seu estágio de santificação, o cristão encara uma nova relação com Deus, com seu semelhante e com o mundo. Espera-se que ele tenha mudado de mentalidade e, consequentemente, de conduta. Uma vez regenerado, não mais viverá em conformidade com “este século” (sistema de valores que define uma mentalidade e forma de vida opostas aos padrões divinos), mas cultiva uma nova disposição mental e prossegue no processo de “renovação interior” (2Co 4.16).
Habilitado pelo Espírito Santo através dos dons ministeriais, o crente reconhece sua vocação no seio da igreja para o serviço no mundo como testemunha e “embaixador em nome de Cristo”, visando à reconciliação do mundo com Deus (cf. 2Co 5.18-20). Ele encara o mundo sob a ótica de Deus, pois ele tem a “mente de Cristo”. A busca por engajar-se nos empreendimentos divinos passa a ser o foco de suas preferências. Em vez de afastar-se do mundo, reconhece que, como “luzeiro do mundo”, precisa manter sua conduta irrepreensível e inculpável “no meio de uma geração pervertida e corrupta” (cf. Fp 2.15), para exercer sua influência, infiltrando-se nos diversos setores da sociedade. Presume-se que tal regenerado reconheça que, por estar inserido na sociedade civil,  precisa ter uma vida pública e política, uma vez que vivencia os mesmos problemas de sua comunidade, paga impostos, integra uma categoria profissional e, eventualmente, um sindicato; vota e/ou é eleito, presta serviço militar e, consequentemente, deve engaja-se nas lutas em defesa do direito, da justiça, da verdade e da vida. Finalmente, reconhece que, como emissário de Jesus, exerce, em seu contexto cultural, o duplo papel de testemunha e de agente transformador.
Independentemente de como o cristão se relaciona com o mundo, ele haverá de ser julgado segundo o critério das obras. As obras identificam a real natureza humana, tanto do salvo como do perdido. Aquilo que o homem semear nesta vida colherá para a eternidade (cf. Gl 6.7-8). A fé salvadora haverá de ser confirmada ou anulada pelas obras, que haverão de ser trazidas a juízo, no último dia. O julgamento segundo as obras é uma forma através da qual Deus revelará em que e como cada pessoa terá investido sua vida. A qualidade e a utilidade da vida serão medidas pelo que dela foi produzido. As obras, que serão trazidas a juízo, são as que a fé ou a incredulidade tiverem produzido.
Paulo, no capítulo 2 de sua Epístola aos Efésios, enfatiza que a salvação está condicionada à fé. Tal salvação vem “não de obras para que ninguém se glorie” (v. 9). Nenhum ser humano, por mais justo que se considere, não conseguirá sua salvação em troca de suas obras, ainda que apresente perante Deus, como em Mt 7.21-23, uma folha de serviços prestados em nome de Jesus. Mas, por outro lado, o indivíduo que professa sua fé em Cristo está obrigado a demonstrá-la por meio de suas obras, “pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Quando um cristão pratica o bem, está cumprindo o propósito para o qual foi recriado (regenerado) em Cristo Jesus. Isto significa literalmente que a regeneração de todo pecador o destina à prática das obras que haverão de contribuir para o cumprimento do propósito salvífico de Deus. O pecado desvia o homem do propósito de Deus, mas, ao ser redimido, o homem é reconduzido ao destino para o qual foi criado, o que implica na prática das obras preparadas de antemão para nós. Tais obras, indiscutivelmente, fazem parte da missão cristã no mundo. A missão cristã não está limitada à exclusividade da evangelização.
Durante vários séculos, a igreja reformada espalhou no mundo a doutrina da salvação pela graça, por meio da fé, em oposição à doutrina católica das obras. Inseriu também na sua prédica a separação entre a igreja e o Estado como forma de combater a associação política entre a Igreja Romana e a Autoridade Governamental. Como conseqüência, a missão concentrou-se na evangelização, que, por sua vez, transformou-se num evangelismo exacerbado, onde a fé em Jesus, como “único e suficiente salvador” era a tônica da mensagem cristã. A prioridade da evangelização tornou-se exclusividade e a omissão das obras transformou-se em alienação irresponsável.
Na segunda metade do século XX, o foco das atenções na obra missionária passou a ser a ação social. Júlio Andrade Ferreira, descrevendo esta dicotomia da evangelização, diz que “é fato que, na obra de Evangelização, a Igreja cuidou mais da alma do que do corpo dos homens. O resultado foi que houve uma reação conhecida por ‘Evangelho Social’ de inspiração modernista que, há meio século teve influência”. [40] Prosseguindo sua linha de raciocínio crítico sobre a missão eclesiástica, Júlio Ferreira diz: “O entrosamento da mensagem espiritual da Igreja, em sua ação social dá-lhe expressão mui significativa. É necessário que a Igreja jamais perca de vista sua missão de proclamar com fidelidade o Evangelho e que, em sua expressão social, não haja interesse algum, senão só puro amor”.[41]
O conceito de santidade, distorcido pela pregação de um evangelho mutilado, fez com que o “abster-se das contaminações do mundo” se tornasse o “afastar-se do mundo”, arrastando a igreja ao pecado da omissão. As obras são a única forma de a igreja por em prática sua doutrina da fé. Doutrina sem prática é mero discurso demagógico; e nisto o mundo é o maior especialista. Uma vez que fé sem obras é morta, o crente só pode apresentar as provas da legitimidade de sua fé através das obras. É por esta razão que as obras serão o critério divino pelo qual seremos todos julgados.
Na parábola dos talentos, Jesus, segundo parece, quis ensinar que o juízo final incluirá o julgamento individual dos cristãos aos quais responsabilizou pelo exercício da missão. É um prestar contas da mordomia que implica em ganhos e perdas. Provavelmente, o mesmo é dito por Paulo, em 1Co 3.13-15: “Manifesta se tornará a obra de cada um, pois o dia a demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada um, o próprio fogo o provará. Se permanecer a obra de alguém [...] esse receberá galardão; se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano [...]”. Com certeza, a igreja é, neste contexto, o protagonista deste drama.
Dentre as obras de incumbência da igreja, as de caráter humanitário também serão trazidas a juízo e servirão de “provas” da real identidade dos salvos e perdidos. Em Mt 25.31-46, é apresentada uma “amostra” das obras pelas quais o veredicto de cada um será pronunciado pelo Supremo Juiz. Fome, sede, falta de abrigo, nudez, sofrer enfermidade ou prisão, são necessidades humanas que requerem assistência. Inúmeros cristãos com certeza sofrerão grande vexame ao ouvir: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me” (vv. 41-43).
Tendo sido apresentada uma visão ampla do significado de missão integral e da abrangência da atividade missionária da igreja no mundo, a conclusão a que se pode chegar é que a igreja é responsável por viabilizar a concretização do eterno desígnio de Deus para com a humanidade e o mundo. A missão requer da igreja ações que tenham como objetivo a restauração do homem e a transformação da sociedade, segundo os valores do reino de Deus. Nisto consiste a dimensão política da missão eclesiástica que passaremos a apresentar no capítulo seguinte.


ABSTRACT

Integral Mission is the term used in the missiology to designate the function of the Church in fulfilling the divine plan which consists in reaching the totality of the ethnicities and each person integrally with the proclamation of the whole gospel in such a way that it results in a double transformation: that of the sinner as an individual and the social context in which he lives. The emphasis of the mission rests on a threefold task: proclamation, discipleship and service. This implies a broader view of the traditional concepts of the gospel, the kingdom of God, and the church. Aware of the world's hostility to God, every Christian, as the ambassador of Christ, will exercise his earthly citizenship according to the principles and values of heavenly citizenship.


KEY WORDS: mission, kingdom, citizenship.


REFERÊNCIAS

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[1] O autor é Bacharel em Teologia, pós-graduado (lato sensu) em Teologia Bíblica; e A Arte da Pregação Expositiva pela FATEBE - Faculdade Teológica Batista Equatorial, Belém-PA; pós-graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana, Londrina-PR; Mestre em Teologia da Missão pelo Seminário Teológico Batista Equatorial, Belém-PA, e graduado em Pedagoria pela Universidade Vale do Acaraú. Atualmente é docente do Seminário Teológico Batista em São Luís, nas disciplinas de Teologia Sistemática e Exegese Bíblica.
[2] Expressão latina da linguagem teológica usada na missiologia para designar a missão de Deus.
[3] PADILLA, René. Missão integral. São Paulo: Temática, 1992, pp. 7, 8.
[4] Transliteração do termo grego kairoV que designa a ideia de tempo, não no sentido cronológico, mas de ocasião, isto é, tempo certo, tempo oportuno, período de tempo limitado, etc.
[5] PADILLA, René. Op. Cit. p. 113.
[6] PADILHA, René. Op. Cit. pp. 113, 114.
[7] GRAHAM, Billy apud A missão da igreja no mundo de hoje, 1989, p. 21.
[8] GRAHAM, Billy. Ibidem, pp. 22, 23.
[9] SENIOR, Donald. Os fundamentos bíblicos da missão. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 9.
[10] BLAUW, Johannes B. A natureza missionária da igreja. 2ed. São Paulo: ASTE, 2012, p. 147.
[11] GUSTAVO WARNECK, apud KARL MULLER, 1995, p. 39.
[12] JOHN STOTT, apud A missão da igreja no mundo de hoje. ABU Editora, 1989, p. 35.
[13] O termo grego usado por Pedro, traduzido como “raça”, é genoV que, literalmente, significa “prole”, “família”, “tribo” e que difere do termo gennhma (aquilo que nasceu ou procriou-se, a progênie de homens ou animais) usado por Jesus, em Mt 12.34, para designar os fariseus como “raça de víboras”. Ao usar o termo genoV, Pedro designa a igreja como pessoas de mesma descendência ou filiação, isto é, uma parentela. O vocábulo eklekton (no nominativo o termo é eklektoV = selecionado, escolhido) que qualifica genoV, sugere uma escolha divina de pessoas adotadas como filhos para compor a família de Deus.
[14] Em grego, basileion (no nominativo, basileioV = real, majestoso, régio) descreve a patente (grau de hierarquia) dos que compõem a categoria do rateuma (ofício de sacerdote, ordem ou corpo de sacerdotes). Neste sentido, Pedro descreve a realeza da categoria de sacerdotes em que a igreja está constituída.
[15] Pedro faz uso do termo eqnoV (multidão, tribo, nação) distinto de laoV (povo, população de algum lugar). Tal distinção sugere a ideia de que a igreja como nação, é um povo organizado que possui um sistema de governo estruturado (reino sacerdotal) e é regido por leis (as leis de Cristo, o Soberano Regente da igreja e do mundo). Sua distinção das demais nações é enfatizada pelo termo hagion (santo[a], que deriva de goV = sublime).
[16] GRELLERT, Manfred. Os compromissos da missão: a caminhada da igreja no contexto brasileiro. Belo Horizonte: Visão Mundial, 1990, p. 45.
[17] VAN ENGEN, Charles. Povo missionário, povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 1996, p. 105.
[18] COLIN WILLIAMS, apud VAN ENGEN, Ibidem, p. 159.
[19] PADILLA, René. Op. Cit. p. 61.
[20] MARTINHO LUTERO, apud Júlio A. FERREIRA, Antologia teológica, 2005, p. 451.
[21] PADILLA, René. op. cit., p. 33.
[22] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Trad. CNBB. Compêndio da doutrina social da igreja. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 31.
[23] Transliteração do vocábulo grego diakonia traduzido no Novo Testamento como “ministério” (o serviço cristão no contexto da igreja local). Especificamente, designa o “trabalho do servente”.
[24] PEDRO ARANA, apud VALDIR STEUERNAGEL. A serviço do reino. Belo Horizonte: Missão Editora, 1992, p. 86.
[25] Em grego, suzhththV  = disputador, contestante hábil, sofista.
[26] O termo grego usado é mwrainw que significa: ser tolo, agir tolamente, fazer tolo.
[27] PADILLA, René. Op. Cit. p. 68.
[28] BOSH, J. David. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. 3ed. São Laeopoldo: SINODAL, 2002, p. 483.
[29] DONALD SENIOR. Os fundamentos bíblicos da missão. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 194.
[30] DONALD SENIOR. Ibidem, p. 192.
[31] E. MORIN. Jesus e as estruturas de seu tempo. 7 ed. São Paulo: Paulus, 1988, p. 56.
[32] L. MORIN. Ibidem, p. 56.
[33] GRELLERT, Manfred. Op. Cit. p. 26.
[34] PADILLA, René. Op. Cit. p. 61.
[35] O termo grego khrugma kerygma (pregação) designa a mensagem proclamada por um arauto, um mensageiro.
[36] K. RAJENDRAN, apud. WILLIAM D. TAYLOR (org). Missiologia global para o século XXI. Londrina: Descoberta, 2001, p. 427.
[37] K. RAJENDRAN. Ibidem, p. 427.
[38] Transliteração do hebraico תּוֹרַת towrah ou הוָה torah = lei (a lei de Deus).
[39] GOPELT, Leonard. Teologia do novo testamento. São Paulo: Teológica, 2003, p. 404.
[40] FERREIRA, Júlio Andrade. (org.) Antologia Teológica. São Paulo: Fonte Editora, 2005, p. 536.
[41] FERREIRA, Júlio Andrade. Ibidem, p. 536.