14 de outubro de 2013

A MISSÃO DA IGREJA NA ERA DA PÓS-MODERNIDADE - I


Pr. José Vidigal Queirós
INTRODUÇÃO
Pós-modernidade é um termo complexo. Não se constitui num movimento cultural, nem numa corrente filosófica; não se trata de um novo sistema econômico nem tampouco de uma nova estrutura ou organização política. Não se trata de uma revolução cultural nem das ciências e das artes. Os críticos e os historiadores ainda não chegaram a um consenso com respeito ao significado do termo. Mas a maioria deles tem algo em comum. Usam o termo Pós-Modernidade para designar a conjuntura que condiciona e caracteriza a nova realidade social em que vivemos no mundo da era pós-industrial, configurada pela cultura da globalização e sua ideologia neoliberal. A sociedade pós-moderna é caracterizada pelo “espetáculo da mídia, do sumiço da realidade [...]. O consumo passou à frente da produção, tornando a luta de classe [...] um conceito obsoleto, fazendo com que as pessoas não se identifiquem mais como classe, mas sim, através de identidades mais particulares, ou seja, de pequenos grupos” (Nilson Thomé, prof. Universidade de Santa Catarina, doutorando em Educação, História e Filosofia, pela Unicamp).
A leitura que os críticos têm feito do mundo atual, sob diversas perspectivas, traz uma visão comum que diferencia a época atual da era moderna: (a) a indefinição (não temos referenciais que nos dêem um direcionamento); (b) o ecletismo (estamos confusos face ao pluralismo das idéias e conceitos desarticulados, onde não há verdades absolutas e o relativismo ético predomina, legitimando a homo e a bissexualidade); (c) o inusitado (optamos pelo não usual, pelo incomum, pelas inovações extravagantes e somos atraídos por tudo que é estranho). Desta forma, o mundo atual vaga sem direção, perde-se na malha das opções de uma sociedade multifacetada que prima pela liberdade individual destituída de valores éticos e morais. David Harvey propõe que:
A crise moral do nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque, embora esse tenha permitido que o homem se emancipasse “da comunidade e da tradição da Idade Média em que sua liberdade individual estava submersa”, sua afirmação do “eu sem Deus” no final negou a si mesmo, já que a razão, um meio, foi deixada, na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta espiritual ou moral. Se a luxúria e o poder são “os únicos valores que não precisam da luz da razão para ser descobertos”, a razão tinha de se tornar um mero instrumento para subjugar os outros [...]. O projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade de Deus sem abandonar os poderes da razão. (David Harvey, Condição Pós-Moderna, 1992, p. 47).
Diante de tal quadro, urge que a igreja tenha uma resposta plausível às demandas da sociedade do mundo pós-moderno. Precisamos urgentemente de uma postura da igreja radicada numa teologia contextualizada que preserve as verdades eternas de Deus e as comunique ao mundo numa linguagem usual de sua época.
O Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em 1974, em Lauzanne, Suíça, pôs em evidência a discussão sobre a responsabilidade social cristã, a partir da reflexão sobre os desafios à evangelização do mundo. Com o tema A Evangelização e o Mundo, René Padilla trouxe à tona o problema mais cruciante da igreja naquele momento: a falta de uma evangelização contextualizada. Evangelização implica compromisso com o mundo e a sua transformação. Para tanto, o evangelho haverá de ser proclamado em todas as suas dimensões, conclamando cada ser humano a integrar-se à nova humanidade em Cristo.
Concebe-se atualmente que não é mais possível que alguém fale de evangelização sem levar em conta a realidade do mundo atual, uma vez que cada remido continuará vivendo nele. O evangelho integral é uma mensagem divina de aspecto duplo. Em seu aspecto pessoal, o evangelho se caracteriza pelo chamamento divino de cada indivíduo à conversão, que se identifica pelo redirecionamento do homem todo a uma relação de compromisso com Deus e com os demais seres humanos. Em seu aspecto cósmico, a mensagem das boas novas proclama o estabelecimento do reino de Deus no mundo, ao mesmo tempo em que revela o propósito divino de restaurar toda a criação.
A partir desta compreensão, a pergunta pelo motivo que justifica a abordagem do tema proposto neste discurso tem sua resposta no contexto em que vive a igreja brasileira, sob a influência desvirtuadora de movimentos eclesiásticos inovadores. Infelizmente, mudanças estão descaracterizando a igreja no Brasil, induzindo-a a uma crise de identidade. O pluralismo teológico controvertido, o proselitismo interdenominacional e competitivo, os modismos inovadores da “cultura gospel” e as práticas extravagantes do neopentecostalismo estão levando a igreja a desviar-se dos padrões ético-neotestamentários do evangelho do reino e alijar-se dos compromissos da missão referentes a sua responsabilidade social e seu papel de agente transformador.
O neopentecostalismo alastra-se no país e cresce numa velocidade vertiginosa. Sob os auspícios de uma liderança comprometida com os interesses de cunho financeiro, também destituída dos princípios éticos que emanam dos valores centrais do reino de Deus, este movimento é o principal responsável pela implantação de um sistema religioso mercantilista que se mantém a custa da ignorância da população ingênua, valendo-se da superstição como mecanismo de manipulação e aprisionamento da mente humana. Em consequência disso, a igreja de Deus, sob a ótica do mundo, é vista simultaneamente como uma agência de negócios e mercado de consumo, tornando-se presa fácil dos mercadores do evangelho. Portanto, uma nova mentalidade está se formando na igreja, onde novos valores distorcem os conceitos de evangelho, reino de Deus, igreja e missão. O evangelho tende a se tornar um produto; o reino de Deus, uma instância do misticismo e da magia; a igreja, uma mercadora da superstição; e a missão, uma estratégia de aliciamento de novos mantenedores do sistema.
Nota-se com evidência que a ala conservadora da igreja enclausura-se em suas organizações internas e programas denominacionais, ignorando sua razão de existir no mundo, promovendo atividades de caráter rotineiro que obscurecem a visão do ministério cristão e da atuação da igreja no seu contexto social. Desta forma, a igreja institucionalizada está deixando o mundo morrer ao seu redor; produzindo cristãos descompromissados que adotam uma conduta ascética fundamentada numa fé irresponsável.
Por outro lado, a ala da igreja considerada mais racional e menos mística absorve os valores do mundo globalizado da era pós-moderna; e, embora adote uma postura crítica ante a realidade em que vive o país, permanece inerte em silêncio, completamente indiferente ao descalabro da comunidade onde está inserida e que cada vez mais se marginaliza. Quase nenhuma influência exerce em seu contexto e, com raras exceções, as igrejas que desenvolvem alguma atividade de caráter social limitam-se a uma ação beneficente medíocre de cunho paternalista que gera dependência e parasitismo. Descaracterizada por esta conjuntura, a igreja em lugar de revelar os desígnios de Deus para com o homem e o mundo, e agir no sentido de redimir e humanizar o homem, reeducando-o segundo os valores propugnados pelo evangelho do reino, visando a construção de uma sociedade inculturada pelo evangelho, produz cristãos destituídos de qualquer vínculo com a sociedade, que fogem dos reais compromissos da missão e se refugiam nas massas aglomeradas em eventos que suscitam e excitam emoções.
De um modo geral, embora ainda não conivente com o sistema de valores do mundo que a cerca nem absorvida totalmente por ele, a igreja assume uma postura de retração que se manifesta pelo seu silêncio diante do erro. A voz de Deus não se faz ouvir por meio da igreja contra a incúria e a omissão das autoridades para com as causas do povo ou os abusos praticados em todas as instâncias do poder público, nem tampouco em defesa da causa dos indefesos como fizeram os profetas enviados por Deus a Israel. Nesta conjuntura, em lugar de unir o homem a Deus e torná-lo um ser socialmente responsável, a religião descompromissada faz quebrar o vínculo entre igreja e sociedade. A realidade demanda por uma apologia do discipulado cristão, onde a ação social se constitua numa expressão fiel da verdadeira fé em Jesus e num compromisso com o reino, visando o cumprimento do eterno desígnio de Deus. Presume-se que tal atitude facilite o resgate do verdadeiro significado de “reino de Deus”, evangelho e missão, e contribua para coibir o progresso da superstição.
Diante de tudo o que até aqui foi exposto, proponho que a abordagem do tema escolhido para esta assembléia tenha como objetivo central contribuir para a conscientização da igreja, como povo missionário de Deus, de sua responsabilidade social para com o mundo, no seu contexto político, socioeconômico e cultural. De forma mais ampla e específica, este discurso visa contribuir para uma releitura das Escrituras no que se refere ao papel da igreja no mundo; despertar na liderança cristã a consciência da universalidade e integralidade da missão eclesiástica e formular uma concepção teológica bíblica e contextualizada de reino de Deus.
Para tanto, é imprescindível que se busque uma resposta à seguinte questão: Qual o papel a ser exercido pela igreja na conjuntura atual? A resposta para esta questão deverá, então, contribuir para uma decisão muito importante concernente à definição dos limites da ação cristã no mundo e à construção de uma mentalidade aberta naqueles que se encontram à margem dos problemas sociais com os quais Deus se preocupa. A linha de raciocínio que adotamos nesta palestra parte da hipótese de que a igreja é o empreendimento divino pelo qual Deus propõe não somente criar uma nova humanidade, mas também adequar o contexto em que ela vive à sua nova realidade de vida. Assim sendo, toda a argumentação que aqui será apresentada fundamenta-se na concepção de que a igreja se constitui numa agência de salvação e transformação social. Todo o desenvolvimento da discussão desta concepção terá como fundamento os pressupostos bíblico-teológicos a seguir.
O primeiro ponto a ser considerado é que Deus está atento aos problemas do mundo. Ele não somente é o criador, mas também o preservador e o redentor de toda a criação. No plano da redenção, Ele busca regenerar o homem, restaurar a criação como um todo e impor uma nova ordem no mundo. Antes que crie “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1), Deus, através do seu povo, age para transformar tanto o indivíduo como o seu contexto social. Os problemas que envolvem o indivíduo, a família e a sociedade são alvos da ação providencial divina, uma vez que os salvos ainda habitam no “mundo dos perdidos”.
O segundo pilar sobre o qual se apóia o tema atual é o fato de que a igreja é o veículo da ação divina no mundo, isto é, a comunidade messiânica do reino por meio da qual os valores propagados pelo evangelho integral haverão de ser estabelecidos no mundo, em todos os níveis das relações humanas. Para tanto, cada discípulo de Jesus precisa estar consciente do verdadeiro significado e propósito de sua vocação como seguidor de Cristo.
O terceiro ponto de apoio consiste na premissa de que a transformação social poderá vir como resultado não só da transformação dos indivíduos que compõem a família e a sociedade, como também da formação de uma consciência coletiva de que os valores universais, oriundos da dignidade humana, podem ser radicalizados através da proclamação do evangelho e das ações de cidadania. Os cristãos reconhecem que o padrão ético das relações humanas está alicerçado na lei divina e, em conseqüência disso, a justiça é o parâmetro pelo qual Deus mede a conduta humana.
O quarto elemento em que se fundamenta o presente estudo resume-se em que o mundo, em todas as suas dimensões (geográficas, étnicas e culturais), é campo da missão de Deus e da igreja. Deus inseriu no mundo seu povo escolhido para nele exercer uma missão com propósito libertador. A libertação do homem ocorre numa dimensão individual e coletiva, tanto no nível espiritual como no social. O evangelho proclama a salvação por meio da fé, cuja legitimidade reside na prática das obras, as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas. Fé e obras são inseparáveis; ambas se completam. Em decorrência disso, compete à igreja, como agência do reino divino, agir em nome de Deus, levantando sua voz profética, não somente para denunciar o pecado, mas também para proclamar os valores do reino e os eternos desígnios de Deus. A proclamação profética da igreja haverá de estar fundamentada na pregação de Jesus concernente ao reino de Deus. Assim sendo, a releitura do evangelho de Jesus, à luz da profecia vétero-testamentária, haverá de dar ênfase ao “reino de Deus e à sua justiça”, como Jesus o fez, a fim de que a ação cristã seja significativa para o mundo atual. Desta forma, a identidade da igreja bem como o seu real papel no mundo poderão ser resgatados e direcionados à práxis.
O quinto elemento que dá consistência ao tema deste estudo consiste em que Deus constituiu a igreja como um reino sacerdotal. Este reino está no mundo e deve operar no mundo em nome de Deus. A igreja é o povo da aliança e exerce uma missão sacerdotal no mundo. A obra de reconciliação do mundo com Deus é agora tarefa da igreja que age como veículo da mediação de Cristo entre o mundo e o seu Criador.
O sexto ponto de apoio que dá consistência ao tema aqui desenvolvido consiste no fato de que a missão cristã requer da igreja o engajamento nas lutas em defesa dos injustiçados, pobres e oprimidos, unindo forças para combater as estruturas sociais injustas e contribuindo para a implementação de mudanças culturais, segundo os padrões do reino de Deus.
Em virtude do tempo que foi designado, proponho apresentar o conteúdo desta palestra em duas secções. A primeira consiste no conceito de missão integral e de mundo como campo desta missão. Na segunda será abordado a práxis eclesiástica no contexto do mundo pós-moderno.

1 Concepção bíblica de missão
A concepção bíblico-teológica de Missão Integral adquiriu, nos últimos anos, ampla significação. Convencionalmente, Missão Integral consiste na tarefa de levar o evangelho todo a todos os homens e ao homem todo. Tal conceito apóia-se não somente no propósito universal de Deus como também na unidade da raça humana inserida num contexto multifacetado que demanda por respostas de Deus às suas aspirações mais amplas e às suas necessidades mais prementes. A globalização [1] do mundo atual tende a universalizar os problemas mais graves que comprometem a vida e a dignidade humana e se estendem para além das fronteiras continentais. A igreja não pode estar alienada das questões que clamam por respostas urgentes e ações concretas. Nesta perspectiva, ela assume uma nova postura exigida pelo contexto em que vive, nesta era pós-moderna.
O exercício da missão demanda por uma concepção mais ampla do evangelho e do reino de Deus, que transcenda os parâmetros da teologia cristã tradicional, sem que distorça o verdadeiro sentido das boas novas de salvação proclamadas por Jesus. Não se concebe mais a idéia de evangelização ou de missão sem levar em conta o homem como um todo e o contexto em que ele está inserido.
René Padilla, um dos oradores do Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suíça, em 1974, considerou que “o contexto no qual se evangeliza é tão importante quanto qualquer outra coisa, ao se decidir acerca do significado do evangelho para aquele mesmo contexto”.[2] Isto significa que a evangelização não pode estar alienada da realidade. Por esta razão, a Missão Integral da Igreja deve construir seu alicerce sobre três pilares: o compromisso com todo o desígnio de Deus, o alcance de cada ser humano em sua totalidade e a transformação social do contexto em que a pessoa vive.
O conceito etimológico de evangelho (boas novas) denota uma mensagem estritamente contextualizada. O mensageiro é portador de uma notícia para seu povo, sua geração e o mundo de sua época. Assim, Jesus tinha uma mensagem atual para seu povo e o significado de tal mensagem aplicava-se ao seu contexto histórico-cultural imediato. Ele fazia cumprir o desígnio de Deus proclamado pelos profetas. Jesus tinha consciência de que a mensagem divina tinha de adequar-se ao tempo oportuno designado pelo próprio Deus. Mas, por outro lado, segundo sua perspectiva do fim dos tempos, considerou também que o conteúdo da mensagem da salvação e da vinda do reino divino perpassaria a história para ir além das gerações, até os confins da terra e até a consumação dos séculos.
Em sua dimensão ultracultural, a igreja busca concretizar o propósito universal divino através da aplicação do evangelho todo a todo homem e ao homem todo. Por outro lado, um evangelho contextualizado requer uma adequação ou direcionamento de sua mensagem às necessidades de seus destinatários. Isto torna necessária uma releitura das Escrituras, visando à descoberta da resposta de Deus às demandas do mundo contemporâneo. Urge, portanto, que se opte por uma teologia renovada, orientada sob a égide do Espírito de Deus, que supra as aspirações transcendentais do homem da era pós-moderna. Neste sentido, “o papel da teologia é interpretar e esclarecer a Palavra de Deus com vistas à obediência a Jesus Cristo, na situação histórica. Em outras palavras, a teologia é um instrumento para a contextualização do evangelho”. [3] O grande risco que se corre nesta operação consiste não só no afunilamento das verdades eternas com perda da amplitude da visão profética da igreja, mas também na aplicação seletiva de um evangelho mutilado.
René Padilla postula que a contextualização do evangelho deriva de uma teologia renovada que esteja pautada nos seguintes princípios: a) “A base da teologia é a Palavra de Deus”; b) “O contexto da teologia é a situação histórica concreta”; c) “O propósito da teologia é a obediência ao Senhor Jesus Cristo”. [4] Tal concepção expressa que a teologia nunca poderá prescindir de sua práxis pastoral que, por sua vez, substancializa-se na encarnação da Palavra de Deus, para viabilizar a inculturação do evangelho na realidade social onde a igreja está inserida. Desta forma, a igreja jamais deve situar-se à margem de sua própria cultura. Alienação cultural é fator que obsta a missão eclesiástica e impede a formação de igrejas autóctones responsáveis pela transformação social do seu contexto imediato. A contextualização do evangelho haverá de ser um fluir da graça de Deus que, através da igreja, o encarna para aplicá-lo integralmente à situação histórica de sua geração, no seu ambiente cultural.
Afirmar que Missão Integral implica a contextualização do evangelho significa dizer que a mensagem proclamada deve atender às necessidades, inquietações e aspirações mais prementes da pessoa humana, em todas as áreas de sua vida, no contexto em que vive. A concepção de Missão Integral deve também reafirmar as seguintes convicções: (a) o compromisso com a autoridade das Escrituras; (b) sem Cristo, todo ser humano está perdido e sem esperança de salvação; (c) Só há salvação em Jesus Cristo; (d) o testemunho cristão engloba a proclamação e as obras.
Em seu pronunciamento no congresso de Lausanne, Billy Graham declarou: “A fé sem obras é morta. A fonte da salvação é a graça. O terreno é a expiação. O meio é a fé. A evidência são as obras”. [5] Evangelização não pode estar dissociada da responsabilidade social. A ação social é a aliada inseparável da evangelização. Mas aqui há o risco de se cometer três erros, como disse o evangelista Billy Graham: “O primeiro é negar que tenhamos qualquer responsabilidade social como cristãos [...]. O segundo erro é permitir que a preocupação de ordem social absorva todo o nosso tempo, tornando-se nossa única missão [...]. O terceiro erro consiste na identificação do Evangelho com algum programa político ou cultural particular”. [6]
A concepção teológica de missão integral está atrelada à natureza da igreja. Além da visão concernente à natureza missionária da igreja, é de se convir que a vocação eclesiástica aponte para o universalismo da mensagem sob os diversos aspectos de sua abrangência: étnico, cultural e sociopolítico. Para tanto, "os fundamentos bíblicos para a missão abrangem a totalidade da palavra de Deus". [7]
A identidade missionária da igreja é designada por sua natureza apostólica. Como disse Johannes B. Blauw, “não existe nenhuma outra igreja senão a igreja enviada ao mundo e não há outra missão a não ser a da Igreja de Cristo”. [8] A apostolicidade é o mais relevante atributo missiológico da igreja. Dele deriva o conceito de missão expresso por Warneck: “Por missão cristã entendemos a atividade conjunta da cristandade, buscando a implantação e a organização da igreja cristã entre os não-cristãos. Tal atividade denomina-se missão, pois se baseia na força do envio do chefe da igreja cristã, é realizada por emissários (apóstolos, missionários) e seu objetivo será atingido assim que não seja mais necessário outro envio”. [9] John Stott conceitua missão nos seguintes termos:
Missão quer dizer a atividade divina que emerge da própria natureza de Deus. Ora, o Deus vivo da Bíblia é um Deus que envia; eis aí, portanto, o significado da palavra. Ele enviou seus profetas a Israel, e enviou o seu Filho ao mundo. Este, por sua vez, enviou os apóstolos, os setenta e a igreja. Enviou também o Espírito Santo à igreja e hoje o envia aos nossos corações. Assim, a missão da igreja resulta da própria missão de Deus, e nela tem de ser modelada. ‘Assim como o Pai me enviou’, disse Jesus, ‘também vos envio a vós’ (Jo 20.21; cf. 17.18).[10]
O conceito de missão eclesiástica deriva do atributo do apostolado da igreja. De acordo com 1Pe 2.9, a igreja tem uma identidade e uma vocação missionária designados pelos termos “geração eleita”, “sacerdócio real” e “nação santa”. A igreja constitui-se na geração dos eleitos de Deus identificada como uma comunidade de regenerados selecionados por Deus. Ela é a segunda raça, a nova criação, [11] a nova humanidade, [12] onde estão congregados todos os filhos de Deus, os nascidos por ação do próprio Deus. Eles se constituem, portanto, nos membros componentes da corte divina. A eleição destes regenerados implica vocação. Deus os gerou e os elegeu para um serviço sagrado: a missão.
O exercício da missão requer autoridade e, para isso, a igreja se constitui num “reino de sacerdotes” isto é, na comunidade sacerdotal do reino divino. A expressão “sacerdócio real” ou “sacerdócio régio” é termo usado para descrever a realeza ou o grau de nobreza da igreja como o corpo de sacerdotes da família real divina. O termo denota o exercício de um ofício com duplo aspecto: um sacerdotal e outro real. Através do primeiro, os santos agem como instrumentos da mediação de Cristo, viabilizando a reconciliação entre o mundo e Deus. Por meio do segundo, eles se apresentam frente ao mundo como legítimos representantes do reino divino, para chamá-lo ao arrependimento e à obediência a Cristo, o Soberano Árbitro do universo.
No contexto da missão, a igreja é uma comunidade de santos constituídos em nação, a “nação santa”. O termo “nação” denota um sentido político, designando a igreja como uma nação entre as nações, distinta das demais pelo atributo de santidade que Deus lhe confere.  Isto expressa as relações de aliança que existiam entre Deus e Israel.[13] Por ter fracassado em guardar tais relações, Israel deixou de ser nacionalmente povo de Deus. Em seu lugar, os santos, tanto judeus como gentios inseridos na igreja, organizam a nova nação herdeira das promessas e prerrogativas que a nova aliança absorve da antiga.
Sob a ótica divina, a igreja porta-se no mundo como a nação prometida que substitui Israel na aliança de Deus com Abraão (confirmada no Sinai) [14] para canalizar a bênção divina ao mundo. [15] Esta nova nação age em missão no mundo, não tendo cidadania terrena permanente, pois, como súditos do reino divino, os cristãos são “peregrinos e forasteiros” [16], cuja “pátria está nos céus”, segundo a teologia de Paulo. [17] A expressão usada por Pedro “povo de propriedade exclusiva” [18] denota a idéia de uma aquisição por resgate. [19]
Neste sentido, a igreja é “povo de possessão divina”,[20] liberto do domínio das forças do mal que operam no mundo e transportado para “o reino do Filho amado de Deus”.[21] A implicação disso é que todos os santos são constituídos em cidadãos do reino divino estabelecido por Cristo aqui na terra.[22] Por isso, os cristãos vivem e agem no mundo segundo os valores do reino celeste. São agentes humanos sob ordem divina que exercem sua nova cidadania através da missão de promover, expandir e consolidar o reino de Deus entre os homens. Como súditos do reino e “embaixadores de Cristo”, no mundo das nações, [23] os santos são porta-vozes oficiais de Deus e de Cristo, incumbidos da missão de reconciliar o mundo com Deus, proclamando “as grandezas daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. [24]
Isto nos traz a convicção de que a missão é divina, não humana. Embora o termo “missão” não conste nas Sagradas Escrituras, seu conceito está fundamentado na Palavra de Deus. Missão é termo essencialmente teológico empregado pela missiologia para designar a atividade de Deus no cumprimento do seu eterno desígnio. Missão está radicada na natureza do próprio Deus. A atividade criadora, preservadora e redentora de Deus exprime a missão divina. Especificamente, na história da salvação, as Escrituras apresentam Deus como um ser que envia. Os patriarcas, os profetas, o Messias, o Espírito Santo, os apóstolos, e por fim a igreja, foram enviados em missão ao mundo. Na teologia paulina, esse mesmo Deus que é “sobre todos”, também “está em todos” com o propósito de agir “por meio de todos”.[25] Este agir divino por meio do seu povo é missão divina no mundo.
O conceito de missão torna-se mais evidente a partir da oração sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (ARA);[26] e do comissionamento dos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (ARA).[27] Isto estabelece o elo entre a missão de Jesus e a missão da igreja. Esta declaração de Jesus traz consigo algumas implicações teológicas que, em seguida, são apresentadas.
Deus é o sujeito da missão. Sua missão consiste na restauração de toda a criação (o homem e o universo) atingida fatalmente pelo pecado e subjugada pelas hostes do mal. A execução de sua missão ocorre pelo envio de seu Filho ao mundo em uma missão salvadora e, por meio do Filho, o Pai envia a igreja. Em decorrência deste fato, a missão da igreja fundamenta-se na autoridade soberana divina. O retorno de Cristo à destra do Pai constituiu-se em sua exaltação como o Soberano Árbitro do Mundo.[28] A proclamação do evangelho não pode excluir o anúncio de que o mundo agora tem um novo chefe. Como sujeito da missão, o Pai, por meio do Filho, requisita o serviço de sua igreja e a envia ao mundo, o mesmo ao qual ele enviou o Filho e o qual Ele ama com amor imensurável.
Por esta razão, o ministério da igreja deve estar pautado no ministério de Jesus. As razões e o propósito da missão de Cristo e da igreja são respectivamente os mesmos. Por conseguinte, a missão de Jesus é parâmetro e modelo para a missão da igreja. [29] Isto quer dizer que cada cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi o apóstolo do Pai. Em decorrência deste fato, a igreja se constitui numa comunidade apostólica, tendo como referencial aquele que a envia. Uma vez que a missão de Jesus tomou forma e concretude em seu tríplice ofício de profeta, sacerdote e rei, a missão da igreja também o será. Segundo Charles Van Engen, “se a igreja se perceber continuadora do ministério de Cristo no mundo, ela o fará em relação à função tríplice de Cristo”.[30]
A igreja é uma comunidade messiânica que assume seu ofício profético ao exercer sua tarefa proclamadora do evangelho do reino. Ao agir como a comunidade mediadora, ministrando os serviços do culto e levando o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela o faz por meio de seu ofício sacerdotal. Por ter recebido as “chaves do reino dos céus” e promover em nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e Deus, a igreja é nomeada como a “embaixada” do reino de Cristo no mundo, [31] legitimando assim o exercício de seu ofício real – reino sacerdotal [32] – com o fim de executar as obras da realeza divina designadas por Cristo. Citado por Van Engen, Colin Williams declara:
Pode-se ver com facilidade que esses três ofícios estão intimamente relacionados às marcas da igreja na tradição da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores], onde a Palavra é verdadeiramente pregada (profeta), os sacramentos são divinamente ministrados (sacerdote) e a santa disciplina é mantida (rei).[33]
Para que a missão da igreja seja pautada pela missão de Jesus é necessário que cada cristão tenha sua vida modela por Jesus. O Novo Testamento define o padrão de vida cristã com base na personalidade de Cristo. Desta forma, todo verdadeiro cristão teoricamente “tem” a mente de Cristo [34], e, consequentemente, sua mente deve estar ocupada com as "coisas lá do alto”. [35] Sua conduta e forma de pensar jamais devem estar em conformidade com os padrões deste século.[36]
O que se deduz desse tríplice ofício apostólico da igreja é que ela, por meio de sua voz e ação profética, clama por justiça e a põe em prática na sua comunidade. Por meio de sua ação sacerdotal, marca sua presença sacramental e reconciliadora, em seu contexto social, onde as pessoas a encaram como a comunidade mediadora da graça divina por vê-la oferecer-lhes a salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo que nela habita e do qual ela é o corpo. Finalmente, por meio de seu ofício régio, a igreja assume a incumbência de implementar e preservar os valores do reino de Deus na cultura, em todas as instâncias do poder e em todos os níveis das relações humanas. Para que seja bem sucedida no fiel cumprimento de sua missão, a igreja precisa de pessoas treinadas, que estejam moral, intelectual e espiritualmente habilitadas. Para tanto, como escreveu Paulo aos Efésios, o Senhor provê para a igreja:
[...] uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo. [37]
Finalmente, sendo Jesus modelo para sua igreja, é imprescindível que a missão eclesiástica esteja centralizada na promoção de seu reino no mundo. O reino foi para Jesus, como também o é para a igreja, o tema central de sua prédica e causa objetiva de sua encarnação. Desta forma, a igreja apresenta-se ao mundo como a comunidade sacramental que assinala a presença do Rei que nela extensivamente se encarnou.

2 O mundo como campo da missão e de conflito
Na encarnação, o destino do Filho de Deus foi o mundo de Deus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (ARA).[38] O reino de Deus se fez presente na pessoa de Jesus, mas de forma incompleta. Ainda vivemos na esperança da salvação [39] e o novo céu e a nova terra ainda estão por vir. A era atual é o tempo da tolerância longânime de Deus que não quer que “nenhum se perca, senão que todos cheguem ao arrependimento”. [40] O evangelho do reino culmina no chamado de Deus ao homem para que se arrependa da pretensão de sua autonomia em relação a Deus, de sua concepção errada do propósito de sua existência, ao viver para si mesmo, e considerar-se senhor do seu próprio destino. Sem o chamado ao arrependimento não há evangelho e sem arrependimento não há salvação. Arrependimento implica uma reestruturação de valores e uma reorientação da vida e personalidade humanas. Ele aponta para a dimensão social do reino e se caracteriza pelo retorno a Deus, ao propósito de Deus e a uma nova vida no mundo. “Quando a evangelização não leva a sério o arrependimento, é porque não leva a sério o mundo, e, quando não leva a sério o mundo, tampouco leva Deus a sério”.[41]
A presença de Cristo no mundo dos homens assinala que Deus está ativo na história para fazer cumprir os seus desígnios. Neste sentido, o arrependimento tem um redirecionamento aos fins últimos do homem que se consumará na era vindoura, uma vez que ele se constitui no marco que delimita e separa a velha da nova dispensação. A era do arrependimento que encerrará a história impõe um novo padrão de vida que resulta do retorno do homem não só a Deus, mas também ao seu próximo. Presume-se também que, como consequência, o arrependimento produz uma reorientação total da vida no mundo como sinal de transformação.
Ao reconhecer Jesus como Senhor, os pecadores são confrontados com a soberania de Cristo sobre a totalidade da vida e compreendem que a mensagem do evangelho não consiste numa mera oferta de benefícios oriundos da graça divina, mas num redirecionamento da vida, na re-socialização do indivíduo e numa relação comprometida com Deus e o mundo de Deus, segundo os valores do seu reino. Não se trata de um cristianismo secularizado que pretenda reduzir o conceito de salvação às concepções propagadas pela Teologia da Libertação, de uma salvação econômica, social e política, que concebe o homem como o artífice de seu próprio destino. Trata-se antes do despertar da consciência da responsabilidade social imposta pelo compromisso com Deus e o amor ao próximo.
O Cristo preexistente e encarnado no homem Jesus veio ao mundo dos homens, não ao mundo ideal, mas ao mundo tal como ele é. Jesus enviou sua igreja “como ele foi enviado” ao mundo geográfico da história, o mundo que, por causa do pecado e a influência das hostes do mal, tornou-se hostil a Deus. A paz entre o homem e Deus é o resultado esperado da missão.[42] Segundo Mateus, Cristo, no exercício de sua missão, realizou três tarefas fundamentais: proclamação – “pregando o evangelho do reino”; discipulado – “ensinando nas sinagogas”; serviço – “curando toda sorte de doenças e enfermidades”. Sua motivação residia em sua compaixão ao “ver as multidões [...] aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor”. [43] As necessidades humanas, das quais as maiores vítimas eram os pobres e os oprimidos, foram o motivo principal para que Jesus encarnasse o espírito e o papel do Servo de Javé. A igreja de Jesus é uma igreja serva. Como disse Pedro Arana, “A igreja, assim como o Senhor Jesus, deve ser uma igreja do caminho e não do balcão. Ela não pode permanecer como espectadora da história: tem de descer para onde se travam as lutas reais dos homens. Ali se encontram as necessidades, que são o chamado premente da igreja para que possa cumprir sua missão”.[44]
Sendo o mundo o campo missionário de Deus, inicialmente através de Cristo na Palestina e agora através da igreja em todas as suas fronteiras, suas estruturas e sistemas devem ser trazidos a serviço de Cristo e a bem da humanidade. A concepção do mundo como campo da missão divina deriva da interpretação que Jesus deu respectivamente à parábola do semeador e à do joio e do trigo. [45] Nesta última, Jesus descreve o aspecto futuro do reino, ao ensinar que os frutos da semeadura divina através de Cristo e da igreja haverão de ser colhidos na consumação dos séculos.
O mundo é simultaneamente campo da missão e campo da disputa, onde a humanidade está dividida em duas linhagens: os filhos do reino e os filhos do maligno. A razão principal que justifica a intervenção de Deus no mundo, antes por meio de Jesus e agora por intermédio da igreja, é o estado de perdição e desordem em que este se encontra. Este estado de perdição, como consequência da queda, manifesta-se em três dimensões ou níveis das relações humanas: espiritual, socioeconômica e política.
A sociedade distanciou-se de Deus, invertendo os valores éticos, desrespeitando a lei divina e violando os direitos humanos estabelecidos pelo Soberano Legislador do universo. Por esta razão, “a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (ARA).[46] Todos se curvam sob o peso de um sistema explorador, onde o acúmulo excessivo de riquezas por parte de alguns produz o estado de alienação, pobreza e miséria em que vive a maioria da população mundial. Por esta razão, a exploração assolou todos os níveis das relações econômicas e o trabalhador é a sua maior vítima, como denunciou Tiago: “Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (ARA).[47]
Diante de tal quadro, a igreja se acomoda numa postura de retração diante dos problemas sociais. Em sua crítica à situação cada vez mais agravante diante da qual a igreja está acomodada, Padilla afirma:
Quando, em seu afã por evitar o conflito, a igreja se acomoda ao espírito da época, perde a dimensão profética de sua missão e se converte em guardiã do status quo. Torna-se sal que perdeu seu sabor [...] A sociedade de consumo impôs um estilo de vida que faz da propriedade privada um direito absoluto e coloca o dinheiro acima do homem e a produção acima da natureza. Esta é a forma que hoje torna este mundo mau, o sistema no qual a vida humana foi organizada pelos poderes de destruição. [48]
Os escritos do Novo Testamento testificam de uma situação conflituosa em que vivem os santos com o mundo. O conflito se estabelece a partir da queda do homem na qual Satanás teve participação. O gestor do mal, a “antiga serpente”, que se manifesta como “sedutor de todo o mundo” [49], cujos intentos são opostos aos desígnios de Deus, é rotulado como “adversário” [50] e/ou “inimigo” [51] de Deus e de seu povo. O plano da redenção tem seu início na promessa do Redentor, conforme o capítulo 3 do livro de Gênesis. [52] Esta passagem descreve a resolução divina de estabelecer uma “inimizade” entre a “serpente”, juntamente com toda a sua “descendência”, e o “descendente” da mulher, que, segundo Paulo, é Cristo.[53] Deus estabeleceu no universo criado um ambiente de hostilidade, estado de guerra, contra as forças do mal.[54] Os sistemas de ordem político-econômica e as estruturas sociais estão, segundo o Novo Testamento, manipulados pelos poderes destruidores do mal.
O Apocalipse, numa linguagem enigmática, narra o drama do embate entre a igreja e o Estado Romano. O Estado impunha-se, através do imperador, como deus e senhor. Os cristãos consideravam tal atitude como blasfêmia, pois aviltava a Deus, constituindo-se num desafio frontal à soberania divina de Cristo. A postura dos cristãos com respeito a César desafiava a honra do imperador e as estruturas sociais do império. O não reconhecimento das prerrogativas divinas atribuídas a César era sinal evidente da convicção da divindade e da soberania de Cristo, a quem os cristãos confessavam como “o Rei dos reis e Senhor dos senhores”. [55] Para o governo romano, os seguidores do crucificado eram reacionários resistentes ao Estado, dignos de serem exterminados com o fim de garantir a paz e a ordem nas províncias onde os cristãos marcavam sua presença. Em passagens como Rm 16.20 e 1Co 15.25-27, Paulo dá ênfase ao cumprimento, por meio de Cristo, da promessa divina de que o descendente da mulher haveria de “esmagar a cabeça da serpente”, [56] desferindo assim o último golpe sobre Satanás, e dando fim ao conflito espiritual com o triunfo de Cristo e da igreja. No contexto atual, o conflito com o mundo tem sido tema de conferências e congressos em virtude da ênfase que lhe foi atribuída pelo Congresso de Lausanne. Em sua seção 12, o documento final produzido pelos participantes daquele congresso assim disserta:
Cremos que estamos envolvidos numa constante batalha espiritual contra os principados e potestades do mal, que buscam destruir a igreja e frustrar a sua tarefa de evangelização mundial. Reconhecemos a necessidade de nos equiparmos com toda a armadura de Deus e lutar neste combate com as armas espirituais da verdade e da oração, já que percebemos a atividade de nosso inimigo, não somente nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela, nos falsos evangelhos que tergiversam as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. A situação demanda vigilância e discernimento para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não estamos imunes à mundanalidade no pensamento e na ação, isto é, a uma capitulação frente ao secularismo.[57]
O conflito com o mundo tem um aspecto ideológico, isto é, deflagra-se no campo das idéias, dos conceitos, nas formas de expressão do pensamento humano. “O deus deste século” que cegou o entendimento dos incrédulos [58] é o mesmo que induz os homens ao forjamento das ideologias anti-Deus que predominam no mundo da pós-modernidade. O “príncipe da potestade do ar” é o espírito que atua nos “filhos da desobediência”, os quais seguem o curso deste mundo,[59] onde os que dele fazem parte repudiam os valores espirituais, dando evasão à vontade da carne, tornando-se por natureza “filhos da ira”.[60]
Quem é o mentor deste século? Quem é e “onde está o inquiridor [61] deste século?”.[62] Prosseguindo em seu questionamento, Paulo deduz que Deus tornou “louca” [63] toda a sabedoria deste mundo, uma vez que o homem desconhece por completo os desígnios do Criador.[64] Por meio do evangelho, Cristo é revelado como sabedoria divina [65], a qual os homens, tanto judeus como gentios, repudiam por considerar absurda a mensagem do evangelho. Mas, paradoxalmente, esta é a maneira pela qual a verdadeira fé se manifesta e pela qual os homens são salvos.[66]
Na teologia de Paulo, o resgate dos que pertencem a Cristo é obra que se concretiza na história por meio da pregação, cujo conteúdo exprime a sabedoria divina, a qual Deus “preordenou desde a eternidade para a nossa glória” (ARA).[67] Como consequência, nós que “não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito de Deus” (ARA) [68] temos agora “a mente de Cristo”.[69] O resultado é que todos os que foram “ressuscitados com Cristo” devem buscar “as coisas lá do alto, onde Cristo vive” e jamais pensar “nas coisas que são aqui da terra”.[70] O “espírito do mundo”, [71] denominado pelo Novo Testamento como “príncipe da potestade do ar”, é o responsável pelo estabelecimento da ordem atual das coisas no mundo como também o autor das ideologias anticristãs que predominam entre os homens. Desta forma, ele dita a mente deste século e dirige o curso do presente século. [72]
O conflito da igreja com o mundo assume também um caráter ético. “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (ARA). [73] Impiedade e perversão são expressões que incorporam todos os atos e manifestações do caráter degenerativo humano, na era presente. A hostilidade a Deus por parte dos homens decorre do fato de que, “tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (ARA). [74] Tal rebeldia atingiu o grau máximo ao optar pela preferência humana em prestar culto à própria criação.[75] Tal atitude consiste em ato de humilhação e de agressão direta à santidade divina. “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia” (ARA) [76], a “paixões infames” [77] e também “a uma disposição mental reprovável para praticarem coisas inconvenientes”. [78]
A atitude hostil dos pecadores é o motivo pelo qual Deus os tem como “inimigos” com os quais busca a reconciliação por meio do seu Filho, Jesus Cristo. [79] Todos os não reconciliados vivem moralmente segundo o “pendor da carne, que é inimizade contra Deus”. [80] A ética deste mundo consiste em um sistema de valores antagônicos aos valores do reino de Deus. Tais valores são identificados como “concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (ARA). [81] Portanto, “a amizade do mundo é inimiga de Deus” e todo “aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (ARA).[82] Além de tornar-se um inimigo de Deus cada amante do mundo também se constitui num aliado do diabo, um súdito de Satanás, pois “o mundo inteiro jaz no maligno”.[83]
A ação missionária da igreja implica não somente na proclamação das boas novas do reino, mas também no embate contra o sistema maligno que impera no mundo e corrompe tanto o indivíduo como a sociedade. Uma sociedade corrompida caracteriza-se pela desvalorização do homem, pelo desrespeito à vida, à liberdade; pela perversão do direito e da justiça e a inversão dos valores absolutizados por Deus e relativizados pelo homem.
Como fruto da técnica e do capitalismo, a sociedade de consumo emergiu no mundo ocidental quando a burguesia ascendeu ao poder político e colocou a tecnologia a serviço de seu próprio enriquecimento. A propriedade privada, antes destinada ao bem dos cidadãos comuns, foi esburgada de sua função social para transformar-se num direito absoluto. A publicidade, controlada pelos detentores do poder econômico, passou a ser instrumentalizada em prol da construção de uma sociedade onde a essência da vida consiste em ter e consumir.
Estudos efetuados pelos analistas da sociedade contemporânea “consideram que nos países desenvolvidos se está vivendo a transição entre a primeira e a segunda revolução técnica. Se na primeira a energia do homem foi substituída pela energia mecânica, na segunda o pensamento das máquinas está substituindo o pensamento humano”. [84]
O complexo industrial a serviço do capital promove na sociedade contemporânea uma concepção distorcida do homem, o qual passa a ser visto como um ser unidimensional que funciona de acordo com as leis da oferta e da procura. Mesmo nos lugares onde a miséria domina, a sociedade de consumo conquistou o seu espaço e fincou suas raízes. A ambição dos pobres residentes nos grandes centros urbanos passou a ser a ascensão social, a conquista de um nível que lhes garanta mais que a satisfação das necessidades básicas, a posse de tudo que se tornou símbolo de status. É neste contexto que a igreja se encontra realizando sua missão. Em seu confronto com o mundo, segundo opina Padilla,
A igreja tem somente duas alternativas: ou limitar sua ação ao aspecto religioso da vida, satisfeita com um cristianismo que assimila os valores da cultura e se adapta ao mundo, negando o evangelho; ou concebendo-se como uma comunidade para a qual não há mais que um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo, e consequentemente entrar em conflito com o mundo. [85]
A vocação profética da igreja demanda compromisso com a pregação do evangelho do reino de Deus através da qual a igreja encarna o reino em meio aos reinos deste mundo. Em consequência disso, o conflito é inevitável. Ao encarnar extensivamente a pessoa do Cristo glorificado, a igreja é desafiada a enfrentar o condicionamento do mundo e seus poderes de destruição. A igreja jamais deve romper com suas raízes de origem, o caminho da cruz, uma vez que ela deriva sua razão de existir de sua aliança com Jesus Cristo, cuja rejeição aos condicionamentos mundanos do seu tempo o levou à morte de cruz.

CONCLUSÃO
Sendo o homem o foco principal do propósito universal de Deus, então, a missão divina pressupõe um aspecto antropocêntrico. A geração de uma nova humanidade que compartilhará com Cristo a glória divina no “novo céu e na nova terra” é a meta principal do plano de Deus. Mas, antes do fim dos tempos, a nova humanidade marcará sua presença no mundo atual da era pós-moderna, o mundo que está subjugado aos poderes do mal, do mal que é sistêmico e está organizado contra Deus. Eis a razão pela qual o mundo hostiliza a igreja durante o exercício da missão. A igreja emerge neste mundo tenebroso, como a lanterna de Deus apontando o caminho para os pecadores, os quais são chamados ao arrependimento, a um redirecionamento a Deus e aos seus semelhantes. A estes pecadores redimidos, reconciliados e santificados por Deus são devolvidos ao mundo em missão como agentes de transformação social, inculturando o evangelho integral no contexto imediato onde estão inseridos.

[1] Globalização é o termo usado neste título para descrever o processo através do qual os efeitos produzidos pelo pluralismo característico da pós-modernidade atingem proporções universais. (Sobre pluralismo e pós-modernidade, vide notas de rodapé nº 1 e nº 3, respectivamente).
[2] RENÉ PADILLA. Missão integral. São Paulo: Temática, 1992, pp. 7, 8.
[3] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 113.
[4] RENÉ PADILLA. Ibidem, p. 113, 114.
[5] BILLY GRAHAM, apud A missão da igreja no mundo de hoje, 1989, p. 21.
[6] BILLY GRAHAM. Ibidem, pp. 22, 23.
[7] DONALD SENIOR. Os fundamentos bíblicos da missão. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 9.
[8] JOHANNES B. BLAUW. A natureza missionária da igreja. p. 122.
[9] GUSTAVO WARNECK, apud KARL MULLER, 1995, p. 39.
[10] JOHN STOTT, apud A missão da igreja no mundo de hoje. ABU Editora, 1989, p. 35.
[11] Cf. 2Co 5.17.
[12] Cf. Ef 4.24; Cl 3.10.
[13] Cf. Êx 19.6.
[14] Cf. Ex 19.5-6.
[15] Cf. Gn 12.1-3.
[16] Cf. 1Pe 2.11.
[17] Cf. Fp 3.20; Ef 2.19.
[18] A expressão “propriedade exclusiva” não traduz fielmente o sentido original. O vocábulo grego peripoihsiV, segundo o Léxico Grego de Strong, nº 4047, significa: possessão, aquisição, propriedade própria. Não denota exclusividade, mas propriedade (direito pessoal de posse sobre algo). Trata-se de uma aquisição, isto é, de uma propriedade adquirida por preço pago. Desta forma, a expressão laoV eiV peripoihsin pode ser melhor traduzida por povo de propriedade adquirida.
[19] Cf. 1Co 6.20; 7.23.
[20] Cf. 1Pe 2.9.
[21] Cf. Cl 1.13.
[22] Cf. Ap 5.9-10.
[23] Cf. 2Co 5.20.
[24] Cf. 1Pe 2.9.
[25] Cf. Ef 4.6.
[26] Cf. Jo 17.18.
[27] Cf. Jo 20.21.
[28] Cf. Mt 28.18.
[29] MANFRED GRELLERT. Os compromissos da missão: a caminhada da igreja no contexto brasileiro. Belo Horizonte: Visão Mundial, 1990, p. 45.
[30] CHARLES VAN ENGEN. Povo missionário, povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 1996, p. 105.
[31] Cf. 2Co 5.19-20.
[32] Cf. 2Pe 2.9.
[33] COLIN WILLIAMS, apud VAN ENGEN, Ibidem, p. 159.
[34] Cf. 1Co 2.6.
[35] Cf. Cl 3.2.
[36] Cf. Rm 12.1-2.
[37] Cf. Ef 4.11-13.
[38] Cf. Jo 17.18.
[39] Cf. Rm 8.24.
[40] Cf. 2Pe 3.9.
[41] RENÉ PADILLA, op. cit., p. 33.
[42] Cf. 2Co 5.18-19.
[43] Cf. Mt 9.35-36.
[44] PEDRO ARANA, apud VALDIR STEUERNAGEL. A serviço do reino. Belo Horizonte: Missão Editora, 1992, p. 86.
[45] Cf. Mt 13.38-39.
[46] Cf. Rm 1.18.
[47] Cf. Tg 5.4.
[48] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 69.
[49] Cf. Ap 12.9; 20.2.
[50] Cf. 1Pe 5.8.
[51] Cf. Mt 13.39; Lc 10.19.
[52] Cf. Gn 3.15.
[53] Cf. Gl 4.4.
[54] Cf. Ef 6.10-12.
[55] Cf. Ap 17.14.
[56] Cf. Gn 3.15.
[57] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 57.
[58] Cf. 2Co 4.4.
[59] Cf. Ef 2.2.
[60] Cf. Ef 2.3.
[61] Em grego, suzhththV  = disputador, contestante hábil, sofista.
[62] Cf. 1Co 1.20.
[63] O termo grego usado é mwrainw que significa: ser tolo, agir tolamente, fazer tolo.
[64] Cf. 1Co 1.21; 2.14.
[65] Cf. 1Co 2.7.
[66] Cf. 1Co 1.21-24.
[67] Cf. 1Co 2.6-7.
[68] Cf. 1Co 2.12.
[69] Cf. 1Co 2.16.
[70] Cf. Cl 3.1-2.
[71] Cf. 1Co 2.12.
[72] Cf. Ef 2.2.
[73] Cf. Rm 1.18.
[74] Cf. Rm 1.21.
[75] Cf. Rm 1.23.
[76] Cf. Rm 1.24.
[77] Cf. Rm 1.26.
[78] Cf. Rm 1.28.
[79] Cf. Rm 5.10-11.
[80] Cf. Rm 8.7.
[81] Cf. Jo 2.15-17.
[82] Cf. Tg 4.4.
[83] Cf. 1Jo 5.19.
[84] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 59.
[85] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 68.




Um comentário:

  1. Anônimo15:46:00

    Glória a Deus pela tua vida pastor Vidigal.
    Continue sendo uma benção nas mãos do SENHOR para que outras vidas sejam também abençoadoas.

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