Pr.
José Vidigal Queirós
INTRODUÇÃO
Pós-modernidade é um termo complexo.
Não se constitui num movimento cultural, nem numa corrente filosófica; não se
trata de um novo sistema econômico nem tampouco de uma nova estrutura ou
organização política. Não se trata de uma revolução cultural nem das ciências e
das artes. Os críticos e os historiadores ainda não chegaram a um consenso com
respeito ao significado do termo. Mas a maioria deles tem algo em comum. Usam o termo
Pós-Modernidade para designar a conjuntura que condiciona e caracteriza a nova
realidade social em que vivemos no mundo da era pós-industrial, configurada
pela cultura da globalização e sua ideologia neoliberal. A sociedade
pós-moderna é caracterizada pelo “espetáculo da mídia, do sumiço da realidade
[...]. O consumo passou à frente da produção, tornando a luta de classe [...] um
conceito obsoleto, fazendo com que as pessoas não se identifiquem mais como
classe, mas sim, através de identidades mais particulares, ou seja, de pequenos
grupos” (Nilson Thomé, prof. Universidade de Santa Catarina, doutorando em
Educação, História e Filosofia, pela Unicamp).
A leitura que os críticos
têm feito do mundo atual, sob diversas perspectivas, traz uma visão comum que
diferencia a época atual da era moderna: (a) a indefinição (não temos referenciais que nos dêem um
direcionamento); (b) o ecletismo
(estamos confusos face ao pluralismo das idéias e conceitos desarticulados, onde
não há verdades absolutas e o relativismo ético predomina, legitimando a homo e
a bissexualidade); (c) o inusitado (optamos
pelo não usual, pelo incomum, pelas inovações extravagantes e somos atraídos
por tudo que é estranho). Desta forma, o mundo atual vaga sem direção, perde-se
na malha das opções de uma sociedade multifacetada que prima pela liberdade
individual destituída de valores éticos e morais. David Harvey propõe que:
A crise
moral do nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque, embora esse
tenha permitido que o homem se emancipasse “da comunidade e da tradição da
Idade Média em que sua liberdade individual estava submersa”, sua afirmação do
“eu sem Deus” no final negou a si mesmo, já que a razão, um meio, foi deixada,
na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta espiritual ou moral. Se a
luxúria e o poder são “os únicos valores que não precisam da luz da razão para
ser descobertos”, a razão tinha de se tornar um mero instrumento para subjugar
os outros [...]. O projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade de Deus
sem abandonar os poderes da razão. (David Harvey, Condição Pós-Moderna, 1992,
p. 47).
Diante de tal quadro, urge
que a igreja tenha uma resposta plausível às demandas da sociedade do mundo
pós-moderno. Precisamos urgentemente de uma postura da igreja radicada numa
teologia contextualizada que preserve as verdades eternas de Deus e as
comunique ao mundo numa linguagem usual de sua época.
O Congresso Internacional
de Evangelização Mundial, realizado em 1974, em Lauzanne, Suíça, pôs em
evidência a discussão sobre a responsabilidade social cristã, a partir da
reflexão sobre os desafios à evangelização do mundo. Com o tema A Evangelização e o Mundo, René Padilla
trouxe à tona o problema mais cruciante da igreja naquele momento: a falta de
uma evangelização contextualizada.
Evangelização implica compromisso com o mundo e a sua transformação. Para
tanto, o evangelho haverá de ser proclamado em todas as suas dimensões,
conclamando cada ser humano a integrar-se à nova humanidade em Cristo.
Concebe-se atualmente que
não é mais possível que alguém fale de evangelização sem levar em conta a
realidade do mundo atual, uma vez que cada remido continuará vivendo nele. O
evangelho integral é uma mensagem divina de aspecto duplo. Em seu aspecto
pessoal, o evangelho se caracteriza pelo chamamento divino de cada indivíduo à
conversão, que se identifica pelo redirecionamento do homem todo a uma relação
de compromisso com Deus e com os demais seres humanos. Em seu aspecto cósmico,
a mensagem das boas novas proclama o estabelecimento do reino de Deus no mundo,
ao mesmo tempo em que revela o propósito divino de restaurar toda a criação.
A partir desta
compreensão, a pergunta pelo motivo que justifica a abordagem do tema proposto neste
discurso tem sua resposta no contexto em que vive a igreja brasileira, sob a
influência desvirtuadora de movimentos eclesiásticos inovadores. Infelizmente,
mudanças estão descaracterizando a igreja no Brasil, induzindo-a a uma crise de
identidade. O pluralismo teológico controvertido, o proselitismo
interdenominacional e competitivo, os modismos inovadores da “cultura gospel” e
as práticas extravagantes do neopentecostalismo estão levando a igreja a
desviar-se dos padrões ético-neotestamentários do evangelho do reino e
alijar-se dos compromissos da missão referentes a sua responsabilidade social e
seu papel de agente transformador.
O neopentecostalismo
alastra-se no país e cresce numa velocidade vertiginosa. Sob os auspícios de
uma liderança comprometida com os interesses de cunho financeiro, também
destituída dos princípios éticos que emanam dos valores centrais do reino de
Deus, este movimento é o principal responsável pela implantação de um sistema
religioso mercantilista que se mantém a custa da ignorância da população
ingênua, valendo-se da superstição como mecanismo de manipulação e
aprisionamento da mente humana. Em consequência disso, a igreja de Deus, sob a
ótica do mundo, é vista simultaneamente como uma agência de negócios e mercado
de consumo, tornando-se presa fácil dos mercadores do evangelho. Portanto, uma
nova mentalidade está se formando na igreja, onde novos valores distorcem os
conceitos de evangelho, reino de Deus, igreja e missão. O evangelho tende a se
tornar um produto; o reino de Deus, uma instância do misticismo e da magia; a
igreja, uma mercadora da superstição; e a missão, uma estratégia de aliciamento
de novos mantenedores do sistema.
Nota-se com evidência que
a ala conservadora da igreja enclausura-se em suas organizações internas e
programas denominacionais, ignorando sua razão de existir no mundo, promovendo
atividades de caráter rotineiro que obscurecem a visão do ministério cristão e
da atuação da igreja no seu contexto social. Desta forma, a igreja
institucionalizada está deixando o mundo morrer ao seu redor; produzindo
cristãos descompromissados que adotam uma conduta ascética fundamentada numa fé
irresponsável.
Por outro lado, a ala da
igreja considerada mais racional e menos mística absorve os valores do mundo
globalizado da era pós-moderna; e, embora adote uma postura crítica ante a
realidade em que vive o país, permanece inerte em silêncio, completamente
indiferente ao descalabro da comunidade onde está inserida e que cada vez mais
se marginaliza. Quase nenhuma influência exerce em seu contexto e, com raras exceções,
as igrejas que desenvolvem alguma atividade de caráter social limitam-se a uma
ação beneficente medíocre de cunho paternalista que gera dependência e
parasitismo. Descaracterizada por esta conjuntura, a igreja em lugar de revelar
os desígnios de Deus para com o homem e o mundo, e agir no sentido de redimir e
humanizar o homem, reeducando-o segundo os valores propugnados pelo evangelho
do reino, visando a construção de uma sociedade inculturada pelo evangelho,
produz cristãos destituídos de qualquer vínculo com a sociedade, que fogem dos
reais compromissos da missão e se refugiam nas massas aglomeradas em eventos
que suscitam e excitam emoções.
De um modo geral, embora ainda não conivente com o sistema de
valores do mundo que a cerca nem absorvida totalmente por ele, a igreja assume
uma postura de retração que se manifesta pelo seu silêncio diante do erro. A
voz de Deus não se faz ouvir por meio da igreja contra a incúria e a omissão
das autoridades para com as causas do povo ou os abusos praticados em todas as
instâncias do poder público, nem tampouco em defesa da causa dos indefesos como
fizeram os profetas enviados por Deus a Israel. Nesta conjuntura, em lugar de
unir o homem a Deus e torná-lo um ser socialmente responsável, a religião
descompromissada faz quebrar o vínculo entre igreja e sociedade. A realidade
demanda por uma apologia do discipulado cristão, onde a ação social se
constitua numa expressão fiel da verdadeira fé em Jesus e num compromisso com o
reino, visando o cumprimento do eterno desígnio de Deus. Presume-se que tal
atitude facilite o resgate do verdadeiro significado de “reino de Deus”,
evangelho e missão, e contribua para coibir o progresso da superstição.
Diante de tudo o
que até aqui foi exposto, proponho que a abordagem do tema escolhido para esta
assembléia tenha como objetivo central contribuir para a conscientização da igreja, como povo
missionário de Deus, de sua responsabilidade social para com o mundo, no seu
contexto político, socioeconômico e cultural. De forma mais ampla e específica, este discurso visa contribuir para
uma releitura das Escrituras no que se refere ao papel da igreja no mundo;
despertar na liderança cristã a consciência da universalidade e integralidade da
missão eclesiástica e formular uma concepção teológica bíblica e
contextualizada de reino de Deus.
Para tanto, é imprescindível que se
busque uma resposta à seguinte questão: Qual o papel a ser exercido pela igreja
na conjuntura atual? A resposta para esta questão deverá, então, contribuir
para uma decisão muito importante concernente à definição dos limites da ação
cristã no mundo e à construção de uma mentalidade aberta naqueles que se
encontram à margem dos problemas sociais com os quais Deus se preocupa. A linha de raciocínio que adotamos nesta palestra parte da
hipótese de que a igreja é o
empreendimento divino pelo qual Deus propõe não somente criar uma nova
humanidade, mas também adequar o contexto em que ela vive à sua nova realidade
de vida. Assim sendo, toda a argumentação que aqui será apresentada
fundamenta-se na concepção de que a
igreja se constitui numa agência de salvação e transformação social. Todo o
desenvolvimento da discussão desta concepção terá como fundamento os
pressupostos bíblico-teológicos a seguir.
O
primeiro ponto a ser considerado é que Deus
está atento aos problemas do mundo. Ele não somente é o criador, mas também
o preservador e o redentor de toda a criação. No plano da redenção, Ele busca regenerar o homem, restaurar a criação como um todo e impor uma nova ordem no mundo. Antes
que crie “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1), Deus, através do seu povo,
age para transformar tanto o indivíduo como o seu contexto social. Os problemas
que envolvem o indivíduo, a família e a sociedade são alvos da ação
providencial divina, uma vez que os salvos ainda habitam no “mundo dos
perdidos”.
O segundo pilar
sobre o qual se apóia o tema atual é o fato de que a igreja é o veículo da ação divina no mundo, isto é, a comunidade
messiânica do reino por meio da qual
os valores propagados pelo evangelho
integral haverão de ser estabelecidos no mundo, em todos os níveis das
relações humanas. Para tanto, cada discípulo de Jesus precisa estar consciente
do verdadeiro significado e propósito de sua vocação como seguidor de Cristo.
O terceiro ponto de
apoio consiste na premissa de que a transformação
social poderá vir como resultado não só da transformação dos indivíduos que
compõem a família e a sociedade, como também da formação de uma consciência
coletiva de que os valores universais, oriundos da dignidade humana, podem ser
radicalizados através da proclamação do evangelho e das ações de cidadania. Os cristãos reconhecem que o padrão ético das relações
humanas está alicerçado na lei divina e, em conseqüência disso, a justiça é o parâmetro pelo qual Deus mede
a conduta humana.
O quarto elemento em que
se fundamenta o presente estudo resume-se em que o mundo, em todas as suas dimensões (geográficas, étnicas e culturais),
é campo da missão de Deus e da igreja. Deus inseriu no mundo seu povo
escolhido para nele exercer uma missão com propósito libertador. A libertação do homem ocorre numa dimensão
individual e coletiva, tanto no nível espiritual como no social. O evangelho
proclama a salvação por meio da fé, cuja legitimidade reside na prática das
obras, as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas. Fé e obras
são inseparáveis; ambas se completam. Em decorrência disso, compete à igreja,
como agência do reino divino, agir em nome de Deus, levantando sua voz
profética, não somente para denunciar o pecado, mas também para proclamar os
valores do reino e os eternos desígnios de Deus. A proclamação profética da
igreja haverá de estar fundamentada na pregação de Jesus concernente ao reino
de Deus. Assim sendo, a releitura do evangelho de Jesus, à
luz da profecia vétero-testamentária, haverá de dar ênfase ao “reino de Deus e
à sua justiça”, como Jesus o fez, a fim de que a ação cristã seja significativa
para o mundo atual. Desta forma, a identidade da igreja bem como o seu real
papel no mundo poderão ser resgatados e direcionados à práxis.
O quinto elemento que dá consistência
ao tema deste estudo consiste em
que Deus constituiu a igreja como um reino sacerdotal. Este reino está
no mundo e deve operar no mundo em nome de Deus. A igreja é o povo da aliança e
exerce uma missão sacerdotal no mundo. A obra de reconciliação do mundo com
Deus é agora tarefa da igreja que age como veículo da mediação de Cristo entre
o mundo e o seu Criador.
O sexto ponto de apoio que
dá consistência ao tema aqui desenvolvido consiste no fato de que a missão cristã requer da igreja o
engajamento nas lutas em defesa dos injustiçados, pobres e oprimidos,
unindo forças para combater as estruturas sociais injustas e contribuindo para
a implementação de mudanças culturais, segundo os padrões do reino de Deus.
Em virtude do tempo que
foi designado, proponho apresentar o conteúdo desta palestra em duas secções. A
primeira consiste no conceito de missão integral e de mundo como campo desta
missão. Na segunda será abordado a práxis
eclesiástica no contexto do mundo pós-moderno.
1
Concepção bíblica de missão
A concepção bíblico-teológica de
Missão Integral adquiriu, nos últimos anos, ampla significação.
Convencionalmente, Missão Integral consiste na tarefa de levar o evangelho todo a todos os homens e ao homem todo.
Tal conceito apóia-se não somente no propósito universal de Deus como também na
unidade da raça humana inserida num contexto multifacetado que demanda por
respostas de Deus às suas aspirações mais amplas e às suas necessidades mais
prementes. A globalização [1] do mundo atual tende a
universalizar os problemas mais graves que comprometem a vida e a dignidade
humana e se estendem para além das fronteiras continentais. A igreja não pode
estar alienada das questões que clamam por respostas urgentes e ações
concretas. Nesta perspectiva, ela assume uma nova postura exigida pelo contexto
em que vive, nesta era pós-moderna.
O exercício da missão demanda por uma concepção mais ampla do evangelho e
do reino de Deus, que transcenda os parâmetros da teologia cristã tradicional,
sem que distorça o verdadeiro sentido das boas novas de salvação proclamadas
por Jesus. Não se concebe mais a idéia de evangelização ou de missão sem levar
em conta o homem como um todo e o contexto em que ele está inserido.
René Padilla, um dos oradores do
Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em
Lausanne, Suíça, em 1974, considerou que “o contexto no qual se evangeliza é
tão importante quanto qualquer outra coisa, ao se decidir acerca do significado
do evangelho para aquele mesmo contexto”.[2]
Isto significa que a evangelização não pode estar alienada da realidade. Por
esta razão, a Missão Integral da Igreja deve construir seu alicerce sobre três
pilares: o compromisso com todo o desígnio de Deus, o alcance de cada ser
humano em sua totalidade e a transformação social do contexto em que a pessoa
vive.
O conceito etimológico de evangelho (boas novas) denota uma
mensagem estritamente contextualizada. O mensageiro é portador de uma notícia
para seu povo, sua geração e o mundo de sua época. Assim, Jesus tinha uma
mensagem atual para seu povo e o
significado de tal mensagem aplicava-se ao seu contexto histórico-cultural
imediato. Ele fazia cumprir o desígnio de Deus proclamado pelos profetas. Jesus
tinha consciência de que a mensagem divina tinha de adequar-se ao tempo
oportuno designado pelo próprio Deus. Mas, por outro lado, segundo sua
perspectiva do fim dos tempos, considerou também que o conteúdo da mensagem da
salvação e da vinda do reino divino perpassaria a história para ir além das
gerações, até os confins da terra e até a consumação dos séculos.
Em sua dimensão ultracultural, a
igreja busca concretizar o propósito universal divino através da aplicação do
evangelho todo a todo homem e ao homem todo. Por outro lado, um evangelho
contextualizado requer uma adequação ou direcionamento de sua mensagem às
necessidades de seus destinatários. Isto torna necessária uma releitura das
Escrituras, visando à descoberta da resposta de Deus às demandas do mundo
contemporâneo. Urge, portanto, que se opte por uma teologia renovada, orientada
sob a égide do Espírito de Deus, que supra as aspirações transcendentais do
homem da era pós-moderna. Neste sentido, “o papel da teologia é interpretar e
esclarecer a Palavra de Deus com vistas à obediência a Jesus Cristo, na
situação histórica. Em outras palavras, a teologia é um instrumento para a
contextualização do evangelho”. [3] O grande risco que se corre
nesta operação consiste não só no afunilamento das verdades eternas com perda
da amplitude da visão profética da igreja, mas também na aplicação seletiva de
um evangelho mutilado.
René Padilla postula que a
contextualização do evangelho deriva de uma teologia renovada que esteja
pautada nos seguintes princípios: a) “A
base da teologia é a Palavra de Deus”; b) “O contexto da teologia é a situação histórica concreta”; c) “O propósito da teologia é a obediência ao
Senhor Jesus Cristo”. [4] Tal concepção expressa que a
teologia nunca poderá prescindir de sua práxis pastoral que, por sua vez,
substancializa-se na encarnação da Palavra de Deus, para viabilizar a
inculturação do evangelho na realidade social onde a igreja está inserida.
Desta forma, a igreja jamais deve situar-se à margem de sua própria cultura.
Alienação cultural é fator que obsta a missão eclesiástica e impede a formação
de igrejas autóctones responsáveis pela transformação social do seu contexto
imediato. A contextualização do evangelho haverá de ser um fluir da graça de
Deus que, através da igreja, o encarna para aplicá-lo integralmente à situação
histórica de sua geração, no seu ambiente cultural.
Afirmar que Missão Integral implica a contextualização do evangelho
significa dizer que a mensagem proclamada deve atender às necessidades,
inquietações e aspirações mais prementes da pessoa humana, em todas as áreas de
sua vida, no contexto em que vive. A concepção de Missão Integral deve também
reafirmar as seguintes convicções: (a) o compromisso com a autoridade das
Escrituras; (b) sem Cristo, todo ser humano está perdido e sem esperança de
salvação; (c) Só há salvação em
Jesus Cristo ; (d) o testemunho cristão engloba a proclamação
e as obras.
Em seu pronunciamento no congresso de
Lausanne, Billy Graham declarou: “A fé sem obras é morta. A fonte da salvação é
a graça. O terreno é a expiação. O meio é a fé. A evidência são as obras”. [5] Evangelização não pode estar
dissociada da responsabilidade social. A ação social é a aliada inseparável da
evangelização. Mas aqui há o risco de se cometer três erros, como disse o
evangelista Billy Graham: “O primeiro é negar que tenhamos qualquer
responsabilidade social como cristãos [...]. O segundo erro é permitir que a
preocupação de ordem social absorva todo o nosso tempo, tornando-se nossa única
missão [...]. O terceiro erro consiste na identificação do Evangelho com algum
programa político ou cultural particular”. [6]
A concepção teológica de missão integral está atrelada à
natureza da igreja. Além da visão concernente à natureza missionária da igreja,
é de se convir que a vocação eclesiástica
aponte para o universalismo da
mensagem sob os diversos aspectos de sua abrangência: étnico, cultural e sociopolítico. Para tanto, "os
fundamentos bíblicos para a missão abrangem a totalidade da palavra de Deus". [7]
A identidade missionária da igreja é
designada por sua natureza apostólica. Como disse Johannes B. Blauw, “não
existe nenhuma outra igreja senão a igreja enviada ao mundo e não há outra missão a não ser a da Igreja de
Cristo”. [8] A apostolicidade é o mais
relevante atributo missiológico da igreja. Dele deriva o conceito de missão
expresso por Warneck: “Por missão cristã entendemos a atividade conjunta da
cristandade, buscando a implantação e a organização da igreja cristã entre os
não-cristãos. Tal atividade denomina-se missão, pois se baseia na força do envio do chefe da igreja cristã, é
realizada por emissários
(apóstolos, missionários) e seu objetivo será atingido assim que não seja mais
necessário outro envio”. [9] John Stott conceitua missão
nos seguintes termos:
Missão quer dizer a
atividade divina que emerge da própria natureza de Deus. Ora, o Deus vivo da
Bíblia é um Deus que envia; eis aí, portanto, o significado da palavra. Ele
enviou seus profetas a Israel, e enviou o seu Filho ao mundo. Este, por sua
vez, enviou os apóstolos, os setenta e a igreja. Enviou também o Espírito Santo
à igreja e hoje o envia aos nossos corações. Assim, a missão da igreja resulta
da própria missão de Deus, e nela tem de ser modelada. ‘Assim como o Pai me
enviou’, disse Jesus, ‘também vos envio a vós’ (Jo 20.21; cf. 17.18).[10]
O conceito de missão eclesiástica
deriva do atributo do apostolado da igreja. De acordo com 1Pe 2.9, a igreja tem
uma identidade e uma vocação
missionária designados pelos termos “geração eleita”, “sacerdócio real”
e “nação santa”. A igreja constitui-se na geração dos eleitos de Deus
identificada como uma comunidade de regenerados selecionados por Deus.
Ela é a segunda raça, a nova criação, [11] a nova humanidade, [12]
onde estão congregados todos os filhos de Deus, os nascidos por ação do próprio
Deus. Eles se constituem, portanto, nos membros componentes da corte divina. A
eleição destes regenerados implica vocação. Deus os gerou e os elegeu
para um serviço sagrado: a missão.
O exercício da missão requer
autoridade e, para isso, a igreja se constitui num “reino de sacerdotes” isto
é, na comunidade sacerdotal do reino divino. A expressão “sacerdócio real” ou
“sacerdócio régio” é termo usado para descrever a realeza ou o grau de nobreza da igreja como o corpo de sacerdotes
da família real divina. O termo denota o exercício de um ofício com duplo
aspecto: um sacerdotal e outro real. Através do primeiro, os santos agem como
instrumentos da mediação de Cristo, viabilizando a reconciliação entre o mundo
e Deus. Por meio do segundo, eles se apresentam frente ao mundo como legítimos
representantes do reino divino, para chamá-lo ao arrependimento e à obediência
a Cristo, o Soberano Árbitro do universo.
No contexto da missão, a igreja é uma
comunidade de santos constituídos em nação,
a “nação santa”. O termo “nação” denota um sentido político, designando
a igreja como uma nação entre as nações,
distinta das demais pelo atributo de santidade que Deus lhe confere. Isto expressa as relações de aliança que
existiam entre Deus e Israel.[13] Por ter fracassado em guardar
tais relações, Israel deixou de ser nacionalmente
povo de Deus. Em seu lugar, os santos, tanto judeus como gentios
inseridos na igreja, organizam a nova nação
herdeira das promessas e prerrogativas que a nova aliança absorve da antiga.
Sob a ótica divina, a igreja porta-se
no mundo como a nação prometida que substitui Israel na aliança de Deus
com Abraão (confirmada no Sinai) [14] para canalizar a bênção
divina ao mundo. [15]
Esta nova nação age em missão no mundo, não tendo cidadania terrena permanente,
pois, como súditos do reino divino, os cristãos são “peregrinos e forasteiros” [16], cuja “pátria está nos
céus”, segundo a teologia de Paulo. [17]
A expressão usada por Pedro “povo de propriedade exclusiva” [18] denota a idéia de uma
aquisição por resgate. [19]
Neste sentido, a igreja é “povo de
possessão divina”,[20] liberto do domínio das
forças do mal que operam no mundo e transportado para “o reino do Filho amado
de Deus”.[21] A implicação disso é que
todos os santos são constituídos em cidadãos do reino divino estabelecido por
Cristo aqui na terra.[22] Por isso, os cristãos vivem
e agem no mundo segundo os valores do reino celeste. São agentes humanos sob ordem divina que
exercem sua nova cidadania
através da missão de promover, expandir e consolidar o reino de Deus entre os
homens. Como súditos do reino e “embaixadores de Cristo”, no mundo das nações, [23] os santos são porta-vozes
oficiais de Deus e de Cristo, incumbidos da missão de reconciliar o mundo com
Deus, proclamando “as grandezas daquele que os chamou das trevas para sua
maravilhosa luz”. [24]
Isto nos traz a convicção de que a
missão é divina, não humana. Embora o termo “missão” não conste nas Sagradas
Escrituras, seu conceito está fundamentado na Palavra de Deus. Missão é termo
essencialmente teológico empregado pela missiologia para designar a atividade
de Deus no cumprimento do seu eterno desígnio. Missão está radicada na natureza
do próprio Deus. A atividade criadora, preservadora e redentora de Deus exprime
a missão divina. Especificamente, na história da salvação, as Escrituras
apresentam Deus como um ser que envia. Os patriarcas, os profetas, o Messias, o
Espírito Santo, os apóstolos, e por fim a igreja, foram enviados em missão ao
mundo. Na teologia paulina, esse mesmo Deus que é “sobre todos”, também “está
em todos” com o propósito de agir “por meio de todos”.[25]
Este agir divino por meio do seu povo é missão divina no mundo.
O conceito de missão torna-se mais
evidente a partir da oração sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao
mundo, também eu os enviei ao mundo” (ARA);[26]
e do comissionamento dos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos
envio” (ARA).[27] Isto estabelece o elo entre
a missão de Jesus e a missão da igreja. Esta declaração de Jesus traz consigo
algumas implicações teológicas que, em seguida, são apresentadas.
Deus é o sujeito da missão. Sua missão consiste na restauração de toda a
criação (o homem e o universo) atingida fatalmente pelo pecado e subjugada
pelas hostes do mal. A execução de sua missão ocorre pelo envio de seu Filho ao
mundo em uma missão salvadora e, por meio do Filho, o Pai envia a igreja. Em
decorrência deste fato, a missão da igreja fundamenta-se na autoridade soberana divina. O retorno de
Cristo à destra do Pai constituiu-se em sua exaltação como o Soberano Árbitro
do Mundo.[28] A proclamação do evangelho
não pode excluir o anúncio de que o mundo agora tem um novo chefe. Como sujeito da missão, o Pai, por meio do Filho,
requisita o serviço de sua igreja e a envia ao mundo, o mesmo ao qual ele
enviou o Filho e o qual Ele ama com amor imensurável.
Por esta razão, o ministério da igreja
deve estar pautado no ministério de Jesus. As razões e o propósito da missão de
Cristo e da igreja são respectivamente os mesmos. Por conseguinte, a missão de Jesus é parâmetro e modelo para
a missão da igreja. [29] Isto quer dizer que cada
cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi o apóstolo do Pai. Em
decorrência deste fato, a igreja se constitui numa comunidade apostólica, tendo
como referencial aquele que a envia. Uma vez que a missão de Jesus tomou forma
e concretude em seu tríplice ofício de profeta, sacerdote e rei, a missão da
igreja também o será. Segundo Charles Van Engen, “se a igreja se perceber
continuadora do ministério de Cristo no mundo, ela o fará em relação à função tríplice
de Cristo”.[30]
A igreja é uma comunidade messiânica
que assume seu ofício profético ao exercer sua tarefa proclamadora do evangelho
do reino. Ao agir como a comunidade mediadora, ministrando os serviços do culto
e levando o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela o faz por
meio de seu ofício sacerdotal. Por ter recebido as “chaves do reino dos céus” e
promover em nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e Deus, a igreja é
nomeada como a “embaixada” do reino de Cristo no mundo, [31]
legitimando assim o exercício de seu ofício real – reino sacerdotal [32] – com o fim de executar as
obras da realeza divina designadas por Cristo. Citado por Van Engen, Colin
Williams declara:
Pode-se ver com
facilidade que esses três ofícios estão intimamente relacionados às marcas da
igreja na tradição da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores], onde a
Palavra é verdadeiramente pregada (profeta), os sacramentos são divinamente
ministrados (sacerdote) e a santa disciplina é mantida (rei).[33]
Para que a missão da igreja seja
pautada pela missão de Jesus é necessário que cada cristão tenha sua vida
modela por Jesus. O Novo Testamento define o padrão de vida cristã com base na
personalidade de Cristo. Desta forma, todo verdadeiro cristão teoricamente “tem”
a mente de Cristo [34], e, consequentemente, sua
mente deve estar ocupada com as "coisas lá do alto”. [35]
Sua conduta e forma de pensar jamais devem estar em conformidade com os padrões
deste século.[36]
O que se deduz desse tríplice ofício
apostólico da igreja é que ela, por meio de sua voz e ação profética, clama por
justiça e a põe em prática na sua comunidade. Por meio de sua ação sacerdotal,
marca sua presença sacramental e reconciliadora, em seu contexto social, onde
as pessoas a encaram como a comunidade mediadora da graça divina por vê-la
oferecer-lhes a salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo que nela habita e
do qual ela é o corpo. Finalmente, por meio de seu ofício régio, a igreja
assume a incumbência de implementar e preservar os valores do reino de Deus na
cultura, em todas as instâncias do poder e em todos os níveis das relações
humanas. Para que seja bem sucedida no fiel cumprimento de sua missão, a igreja
precisa de pessoas treinadas, que estejam moral, intelectual e espiritualmente
habilitadas. Para tanto, como escreveu Paulo aos Efésios, o Senhor provê para a
igreja:
[...] uns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para
pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho
do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à
unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita
varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo. [37]
Finalmente, sendo Jesus modelo para
sua igreja, é imprescindível que a missão eclesiástica esteja centralizada na
promoção de seu reino no mundo. O reino foi para Jesus, como também o é para a
igreja, o tema central de sua prédica e causa objetiva de sua encarnação. Desta
forma, a igreja apresenta-se ao mundo como a comunidade sacramental que
assinala a presença do Rei que nela extensivamente se encarnou.
2
O mundo como campo da missão e de conflito
Na encarnação, o destino do Filho de
Deus foi o mundo de Deus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os
enviei ao mundo” (ARA).[38] O reino de Deus se fez
presente na pessoa de Jesus, mas de forma incompleta. Ainda vivemos na
esperança da salvação [39] e o novo céu e a nova terra
ainda estão por vir. A era atual é o tempo da tolerância longânime de Deus que
não quer que “nenhum se perca, senão que todos cheguem ao arrependimento”. [40] O evangelho do reino culmina
no chamado de Deus ao homem para que se arrependa da pretensão de sua autonomia
em relação a Deus, de sua concepção errada do propósito de sua existência, ao
viver para si mesmo, e considerar-se senhor do seu próprio destino. Sem o
chamado ao arrependimento não há evangelho e sem arrependimento não há
salvação. Arrependimento implica uma reestruturação de valores e uma
reorientação da vida e personalidade humanas. Ele aponta para a dimensão social
do reino e se caracteriza pelo retorno a Deus, ao propósito de Deus e a uma
nova vida no mundo. “Quando a evangelização não leva a sério o arrependimento,
é porque não leva a sério o mundo, e, quando não leva a sério o mundo, tampouco
leva Deus a sério”.[41]
A presença de Cristo no mundo dos
homens assinala que Deus está ativo na história para fazer cumprir os seus
desígnios. Neste sentido, o arrependimento tem um redirecionamento aos fins
últimos do homem que se consumará na era vindoura, uma vez que ele se constitui
no marco que delimita e separa a velha da nova dispensação. A era do
arrependimento que encerrará a história impõe um novo padrão de vida que
resulta do retorno do homem não só a Deus, mas também ao seu próximo. Presume-se
também que, como consequência, o arrependimento produz uma reorientação total
da vida no mundo como sinal de transformação.
Ao reconhecer Jesus como Senhor, os
pecadores são confrontados com a soberania de Cristo sobre a totalidade da vida
e compreendem que a mensagem do evangelho não consiste numa mera oferta de
benefícios oriundos da graça divina, mas num redirecionamento da vida, na re-socialização do indivíduo e numa
relação comprometida com Deus e o mundo de Deus, segundo os valores do seu reino.
Não se trata de um cristianismo secularizado
que pretenda reduzir o conceito de salvação às concepções propagadas pela
Teologia da Libertação, de uma salvação econômica, social e política, que
concebe o homem como o artífice de seu próprio destino. Trata-se antes do
despertar da consciência da responsabilidade social imposta pelo compromisso
com Deus e o amor ao próximo.
O Cristo preexistente e encarnado no
homem Jesus veio ao mundo dos homens, não ao mundo ideal, mas ao mundo tal como
ele é. Jesus enviou sua igreja “como ele foi enviado” ao mundo geográfico da
história, o mundo que, por causa do pecado e a influência das hostes do mal,
tornou-se hostil a Deus. A paz entre o homem e Deus é o resultado esperado da
missão.[42] Segundo Mateus, Cristo, no
exercício de sua missão, realizou três tarefas fundamentais: proclamação
– “pregando o evangelho do reino”; discipulado – “ensinando nas
sinagogas”; serviço – “curando toda sorte de doenças e enfermidades”.
Sua motivação residia em sua compaixão ao “ver as multidões [...] aflitas e
exaustas como ovelhas que não têm pastor”. [43]
As necessidades humanas, das quais as maiores vítimas eram os pobres e os
oprimidos, foram o motivo principal para que Jesus encarnasse o espírito e o
papel do Servo de Javé. A igreja de Jesus é uma igreja serva. Como disse Pedro
Arana, “A igreja, assim como o Senhor Jesus, deve ser uma igreja do caminho e
não do balcão. Ela não pode permanecer como espectadora da história: tem de
descer para onde se travam as lutas reais dos homens. Ali se encontram as
necessidades, que são o chamado premente da igreja para que possa cumprir sua
missão”.[44]
Sendo o mundo o campo missionário de
Deus, inicialmente através de Cristo na Palestina e agora através da igreja em
todas as suas fronteiras, suas estruturas e sistemas devem ser trazidos a
serviço de Cristo e a bem da humanidade. A concepção do mundo como campo da
missão divina deriva da interpretação que Jesus deu respectivamente à parábola
do semeador e à do joio e do trigo. [45]
Nesta última, Jesus descreve o aspecto futuro do reino, ao ensinar que os
frutos da semeadura divina através de Cristo e da igreja haverão de ser
colhidos na consumação dos séculos.
O mundo é simultaneamente campo da
missão e campo da disputa, onde a humanidade está dividida em duas linhagens:
os filhos do reino e os filhos do maligno. A razão principal que justifica a
intervenção de Deus no mundo, antes por meio de Jesus e agora por intermédio da
igreja, é o estado de perdição e desordem em que este se encontra. Este estado
de perdição, como consequência da queda, manifesta-se em três dimensões ou
níveis das relações humanas: espiritual, socioeconômica e política.
A sociedade distanciou-se de Deus,
invertendo os valores éticos, desrespeitando a lei divina e violando os
direitos humanos estabelecidos pelo Soberano Legislador do universo. Por esta
razão, “a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos
homens que detêm a verdade pela injustiça” (ARA).[46]
Todos se curvam sob o peso de um sistema explorador, onde o acúmulo excessivo
de riquezas por parte de alguns produz o estado de alienação, pobreza e miséria
em que vive a maioria da população mundial. Por esta razão, a exploração
assolou todos os níveis das relações econômicas e o trabalhador é a sua maior
vítima, como denunciou Tiago: “Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram
os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os
clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos”
(ARA).[47]
Diante de tal quadro, a igreja se
acomoda numa postura de retração diante dos problemas sociais. Em sua crítica à
situação cada vez mais agravante diante da qual a igreja está acomodada,
Padilla afirma:
Quando, em seu afã
por evitar o conflito, a igreja se acomoda ao espírito da época, perde a
dimensão profética de sua missão e se converte em guardiã do status quo.
Torna-se sal que perdeu seu sabor [...] A sociedade de consumo impôs um estilo
de vida que faz da propriedade privada um direito absoluto e coloca o dinheiro
acima do homem e a produção acima da natureza. Esta é a forma que hoje torna
este mundo mau, o sistema no qual a vida humana foi organizada pelos poderes de
destruição. [48]
Os escritos do Novo Testamento
testificam de uma situação conflituosa em que vivem os santos com o mundo. O
conflito se estabelece a partir da queda do homem na qual Satanás teve
participação. O gestor do mal, a “antiga serpente”, que se manifesta como
“sedutor de todo o mundo” [49], cujos intentos são opostos
aos desígnios de Deus, é rotulado como “adversário” [50]
e/ou “inimigo” [51] de Deus e de seu povo. O
plano da redenção tem seu início na promessa do Redentor, conforme o capítulo 3
do livro de Gênesis. [52] Esta passagem descreve a
resolução divina de estabelecer uma “inimizade” entre a “serpente”, juntamente com
toda a sua “descendência”, e o “descendente” da mulher, que, segundo Paulo, é
Cristo.[53] Deus estabeleceu no universo
criado um ambiente de hostilidade, estado de guerra, contra as forças do mal.[54] Os sistemas de ordem
político-econômica e as estruturas sociais estão, segundo o Novo Testamento,
manipulados pelos poderes destruidores do mal.
O Apocalipse, numa linguagem
enigmática, narra o drama do embate entre a igreja e o Estado Romano. O Estado
impunha-se, através do imperador, como deus e senhor. Os cristãos consideravam
tal atitude como blasfêmia, pois aviltava a Deus, constituindo-se num desafio
frontal à soberania divina de Cristo. A postura dos cristãos com respeito a
César desafiava a honra do imperador e as estruturas sociais do império. O não
reconhecimento das prerrogativas divinas atribuídas a César era sinal evidente
da convicção da divindade e da soberania de Cristo, a quem os cristãos
confessavam como “o Rei dos reis e Senhor dos senhores”. [55]
Para o governo romano, os seguidores do crucificado eram reacionários
resistentes ao Estado, dignos de serem exterminados com o fim de garantir a paz
e a ordem nas províncias onde os cristãos marcavam sua presença. Em passagens
como Rm 16.20 e 1Co 15.25-27, Paulo dá ênfase ao cumprimento, por meio de Cristo,
da promessa divina de que o descendente da mulher haveria de “esmagar a cabeça
da serpente”, [56] desferindo assim o último
golpe sobre Satanás, e dando fim ao conflito espiritual com o triunfo de Cristo
e da igreja. No contexto atual, o conflito com o mundo tem sido tema de
conferências e congressos em virtude da ênfase que lhe foi atribuída pelo
Congresso de Lausanne. Em sua seção 12, o documento final produzido pelos
participantes daquele congresso assim disserta:
Cremos que estamos
envolvidos numa constante batalha espiritual contra os principados e potestades
do mal, que buscam destruir a igreja e frustrar a sua tarefa de evangelização
mundial. Reconhecemos a necessidade de nos equiparmos com toda a armadura de
Deus e lutar neste combate com as armas espirituais da verdade e da oração, já
que percebemos a atividade de nosso inimigo, não somente nas falsas ideologias
fora da igreja, mas também dentro dela, nos falsos evangelhos que tergiversam
as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. A situação demanda vigilância
e discernimento para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós
mesmos não estamos imunes à mundanalidade no pensamento e na ação, isto é, a
uma capitulação frente ao secularismo.[57]
O conflito com o mundo tem um aspecto ideológico, isto é, deflagra-se no campo das
idéias, dos conceitos, nas formas de expressão do pensamento humano. “O
deus deste século” que cegou o entendimento dos incrédulos [58] é o mesmo que induz os
homens ao forjamento das ideologias anti-Deus que predominam no mundo da
pós-modernidade. O “príncipe da potestade do ar” é o espírito que atua nos
“filhos da desobediência”, os quais seguem o curso deste mundo,[59] onde os que dele fazem parte
repudiam os valores espirituais, dando evasão à vontade da carne, tornando-se
por natureza “filhos da ira”.[60]
Quem é o mentor deste século? Quem é e
“onde está o inquiridor [61] deste século?”.[62] Prosseguindo em seu
questionamento, Paulo deduz que Deus tornou “louca” [63]
toda a sabedoria deste mundo, uma vez que o homem desconhece por completo os
desígnios do Criador.[64] Por meio do evangelho,
Cristo é revelado como sabedoria divina [65],
a qual os homens, tanto judeus como gentios, repudiam por considerar absurda a
mensagem do evangelho. Mas, paradoxalmente, esta é a maneira pela qual a verdadeira
fé se manifesta e pela qual os homens são salvos.[66]
Na teologia de Paulo, o resgate dos
que pertencem a Cristo é obra que se concretiza na história por meio da
pregação, cujo conteúdo exprime a sabedoria divina, a qual Deus “preordenou
desde a eternidade para a nossa glória” (ARA).[67]
Como consequência, nós que “não temos recebido o espírito do mundo, e sim o
Espírito de Deus” (ARA) [68] temos agora “a mente de
Cristo”.[69] O resultado é que todos os
que foram “ressuscitados com Cristo” devem buscar “as coisas lá do alto, onde
Cristo vive” e jamais pensar “nas coisas que são aqui da terra”.[70] O “espírito do mundo”, [71] denominado pelo Novo
Testamento como “príncipe da potestade do ar”, é o responsável pelo
estabelecimento da ordem atual das coisas no mundo como também o autor das
ideologias anticristãs que predominam entre os homens. Desta forma, ele dita a
mente deste século e dirige o curso do presente século. [72]
O conflito da igreja com o mundo
assume também um caráter ético.
“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens
que detêm a verdade pela injustiça” (ARA). [73]
Impiedade e perversão são expressões que incorporam todos os atos e
manifestações do caráter degenerativo humano, na era presente. A hostilidade a
Deus por parte dos homens decorre do fato de que, “tendo conhecimento de Deus,
não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em
seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (ARA). [74] Tal rebeldia atingiu o grau
máximo ao optar pela preferência humana em prestar culto à própria criação.[75] Tal atitude consiste em ato
de humilhação e de agressão direta à santidade divina. “Por isso, Deus entregou
tais homens à imundícia” (ARA) [76], a “paixões infames” [77] e também “a uma disposição
mental reprovável para praticarem coisas inconvenientes”. [78]
A atitude hostil dos pecadores é o
motivo pelo qual Deus os tem como “inimigos” com os quais busca a reconciliação
por meio do seu Filho, Jesus Cristo. [79]
Todos os não reconciliados vivem moralmente segundo o “pendor da carne, que é
inimizade contra Deus”. [80] A ética deste mundo consiste
em um sistema de valores antagônicos aos valores do reino de Deus. Tais valores
são identificados como “concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e a
soberba da vida” (ARA). [81] Portanto, “a amizade do
mundo é inimiga de Deus” e todo “aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo
constitui-se inimigo de Deus” (ARA).[82]
Além de tornar-se um inimigo de Deus cada amante do mundo também se constitui
num aliado do diabo, um súdito de Satanás, pois “o mundo inteiro jaz no
maligno”.[83]
A ação missionária da igreja implica
não somente na proclamação das boas novas do reino, mas também no embate contra
o sistema maligno que impera no mundo e corrompe tanto o indivíduo como a sociedade.
Uma sociedade corrompida caracteriza-se pela desvalorização do homem, pelo
desrespeito à vida, à liberdade; pela perversão do direito e da justiça e a
inversão dos valores absolutizados por Deus e relativizados pelo homem.
Como fruto da técnica e do
capitalismo, a sociedade de consumo emergiu no mundo ocidental quando a
burguesia ascendeu ao poder político e colocou a tecnologia a serviço de seu
próprio enriquecimento. A propriedade privada, antes destinada ao bem dos
cidadãos comuns, foi esburgada de sua função social para transformar-se num
direito absoluto. A publicidade, controlada pelos detentores do poder
econômico, passou a ser instrumentalizada em prol da construção de uma
sociedade onde a essência da vida consiste em ter e consumir.
Estudos efetuados pelos analistas da
sociedade contemporânea “consideram que nos países desenvolvidos se está
vivendo a transição entre a primeira e a segunda revolução técnica. Se na
primeira a energia do homem foi substituída pela energia mecânica, na segunda o
pensamento das máquinas está substituindo o pensamento humano”. [84]
O complexo industrial a serviço do
capital promove na sociedade contemporânea uma concepção distorcida do homem, o
qual passa a ser visto como um ser unidimensional que funciona de acordo com as
leis da oferta e da procura. Mesmo nos lugares onde a miséria domina, a
sociedade de consumo conquistou o seu espaço e fincou suas raízes. A ambição
dos pobres residentes nos grandes centros urbanos passou a ser a ascensão
social, a conquista de um nível que lhes garanta mais que a satisfação das
necessidades básicas, a posse de tudo que se tornou símbolo de status. É neste
contexto que a igreja se encontra realizando sua missão. Em seu confronto com o
mundo, segundo opina Padilla,
A igreja tem
somente duas alternativas: ou limitar sua ação ao aspecto religioso da vida,
satisfeita com um cristianismo que assimila os valores da cultura e se adapta
ao mundo, negando o evangelho; ou concebendo-se como uma comunidade para a qual
não há mais que um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo, e
consequentemente entrar em conflito com o mundo. [85]
A vocação profética da igreja demanda
compromisso com a pregação do evangelho do reino de Deus através da qual a
igreja encarna o reino em meio aos reinos deste mundo. Em consequência disso, o
conflito é inevitável. Ao encarnar extensivamente a pessoa do Cristo
glorificado, a igreja é desafiada a enfrentar o condicionamento do mundo e seus
poderes de destruição. A igreja jamais deve romper com suas raízes de origem, o
caminho da cruz, uma vez que ela deriva sua razão de existir de sua aliança com
Jesus Cristo, cuja rejeição aos condicionamentos mundanos do seu tempo o levou
à morte de cruz.
CONCLUSÃO
Sendo o
homem o foco principal do propósito universal de Deus, então, a missão divina pressupõe um aspecto antropocêntrico. A
geração de uma nova humanidade que compartilhará com Cristo a glória divina no
“novo céu e na nova terra” é a meta principal do plano de Deus. Mas, antes do
fim dos tempos, a nova humanidade marcará sua presença no mundo atual da era
pós-moderna, o mundo que está subjugado aos poderes do mal, do mal que é
sistêmico e está organizado contra Deus. Eis a razão pela qual o mundo
hostiliza a igreja durante o exercício da missão. A igreja emerge neste mundo tenebroso,
como a lanterna de Deus apontando o caminho para os pecadores, os quais são
chamados ao arrependimento, a um redirecionamento a Deus e aos seus
semelhantes. A estes pecadores redimidos, reconciliados e santificados por Deus
são devolvidos ao mundo em missão como agentes de transformação social,
inculturando o evangelho integral no contexto imediato onde estão inseridos.
[1] Globalização
é o termo usado neste título para descrever o processo através do qual os efeitos
produzidos pelo pluralismo característico da pós-modernidade atingem proporções
universais. (Sobre pluralismo e pós-modernidade, vide notas de rodapé nº
1 e nº 3, respectivamente).
[2] RENÉ PADILLA. Missão integral. São Paulo:
Temática, 1992, pp. 7, 8.
[3] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 113.
[4] RENÉ PADILLA. Ibidem, p. 113, 114.
[5] BILLY GRAHAM, apud A missão da igreja no mundo de hoje, 1989, p.
21.
[6] BILLY
GRAHAM. Ibidem, pp. 22, 23.
[7] DONALD SENIOR. Os fundamentos
bíblicos da missão. São Paulo:
Paulinas, 1987, p. 9.
[8] JOHANNES B. BLAUW. A natureza missionária da
igreja. p. 122.
[9] GUSTAVO WARNECK,
apud KARL MULLER, 1995, p. 39.
[10] JOHN STOTT, apud A
missão da igreja no mundo de hoje. ABU Editora, 1989, p. 35.
[11] Cf. 2Co 5.17.
[12] Cf. Ef 4.24; Cl 3.10.
[13] Cf. Êx 19.6.
[14] Cf. Ex 19.5-6.
[15] Cf. Gn
12.1-3.
[16] Cf. 1Pe 2.11.
[17] Cf. Fp 3.20; Ef
2.19.
[18] A expressão “propriedade exclusiva” não traduz
fielmente o sentido original. O vocábulo grego peripoihsiV, segundo o Léxico
Grego de Strong, nº 4047, significa: possessão,
aquisição, propriedade própria. Não denota exclusividade, mas propriedade
(direito pessoal de posse sobre algo). Trata-se de uma aquisição,
isto é, de uma propriedade adquirida por preço pago. Desta forma, a
expressão laoV eiV peripoihsin pode ser melhor traduzida por povo
de propriedade adquirida.
[19] Cf. 1Co 6.20; 7.23.
[20] Cf. 1Pe 2.9.
[21] Cf. Cl 1.13.
[22] Cf. Ap 5.9-10.
[23] Cf. 2Co 5.20.
[24] Cf. 1Pe 2.9.
[25] Cf. Ef 4.6.
[26] Cf. Jo 17.18.
[27] Cf. Jo 20.21.
[28] Cf. Mt 28.18.
[29] MANFRED GRELLERT. Os
compromissos da missão: a caminhada da igreja no contexto brasileiro. Belo
Horizonte: Visão Mundial, 1990, p. 45.
[30] CHARLES VAN ENGEN. Povo
missionário, povo de Deus. São
Paulo: Vida Nova, 1996, p.
105.
[31] Cf. 2Co 5.19-20.
[32] Cf. 2Pe 2.9.
[33] COLIN WILLIAMS,
apud VAN ENGEN, Ibidem, p. 159.
[34] Cf. 1Co 2.6.
[35] Cf. Cl 3.2.
[36] Cf. Rm 12.1-2.
[37] Cf. Ef 4.11-13.
[38] Cf. Jo 17.18.
[39] Cf. Rm 8.24.
[40] Cf. 2Pe 3.9.
[41] RENÉ PADILLA, op.
cit., p. 33.
[42] Cf. 2Co 5.18-19.
[43] Cf. Mt 9.35-36.
[44] PEDRO ARANA, apud VALDIR STEUERNAGEL. A serviço do reino. Belo Horizonte: Missão Editora, 1992,
p. 86.
[45] Cf. Mt 13.38-39.
[46] Cf. Rm 1.18.
[47] Cf. Tg 5.4.
[48] RENÉ PADILLA. Op. Cit. p. 69.
[49] Cf. Ap 12.9; 20.2.
[50] Cf. 1Pe 5.8.
[51] Cf. Mt 13.39; Lc 10.19.
[52] Cf. Gn 3.15.
[53] Cf. Gl 4.4.
[54] Cf. Ef 6.10-12.
[55] Cf. Ap 17.14.
[56] Cf. Gn 3.15.
[57] RENÉ PADILLA. Op.
Cit. p. 57.
[58] Cf. 2Co 4.4.
[59] Cf. Ef 2.2.
[60] Cf. Ef 2.3.
[61] Em grego, suzhththV = disputador, contestante hábil, sofista.
[62] Cf. 1Co 1.20.
[63] O termo grego usado é mwrainw que significa: ser tolo, agir tolamente,
fazer tolo.
[64] Cf. 1Co 1.21; 2.14.
[65] Cf. 1Co 2.7.
[66] Cf. 1Co 1.21-24.
[67] Cf. 1Co 2.6-7.
[68] Cf. 1Co 2.12.
[69] Cf. 1Co 2.16.
[70] Cf. Cl 3.1-2.
[71] Cf. 1Co 2.12.
[72] Cf. Ef 2.2.
[73] Cf. Rm 1.18.
[74] Cf. Rm 1.21.
[75] Cf. Rm 1.23.
[76] Cf. Rm 1.24.
[77] Cf. Rm 1.26.
[78] Cf. Rm 1.28.
[79] Cf. Rm 5.10-11.
[80] Cf. Rm 8.7.
[81] Cf. Jo 2.15-17.
[82] Cf. Tg 4.4.
[83] Cf. 1Jo 5.19.
[84] RENÉ PADILLA. Op.
Cit. p. 59.
Glória a Deus pela tua vida pastor Vidigal.
ResponderExcluirContinue sendo uma benção nas mãos do SENHOR para que outras vidas sejam também abençoadoas.