29 de junho de 2014

MISSÃO INTEGRAL - A NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA (1ª PARTE)





Introdução
A igreja, segundo a concepção do apóstolo Paulo, é uma corporação. Não está inserida aqui a ideia de uma organização de caráter institucional, mas de uma estrutura orgânica que tem vida. É o corpo onde habita o “Espírito de Cristo”; é “templo, santuário e edifício de Deus” (1Co 12.27; 1Co 3.16; 1Co 3.9). A igreja é de Deus e, em seu nome, exerce no mundo uma missão.
O Deus que “está em todos e age por meio de todos (Ef 4.6) é o único sujeito da missão e a igreja, como agência executora de Sua vontade soberana, age no mundo, visando o alcance do Seu propósito para com a humanidade, segundo o Seu eterno desígnio para com toda a criação.

1. A eleição e a vocação universal da igreja
A igreja tem suas raízes na “qahal” judaica. Israel, como povo da aliança, era o povo eleito para o serviço sacerdotal no mundo das nações. Em sua aliança com Abraão, Deus prometeu que, por meio de sua descendência, todas as famílias da terra haveriam de ser abençoadas (Gn 12.3; cf. Gn 28.14).
Na aliança do Sinai, Israel é designado comoreino de sacerdotes” e “nação santa” (Ex 19.6), assumindo uma posição de mediação na relação entre Deus e as nações gentílicas. O apóstolo Paulo, no capítulo 3 de sua Epístola aos Gálatas, reconhece que a promessa a Abraão cumpre-se na igreja, na qual estão os verdadeiros filhos de Abraão, segundo a (v.7); e todas as nações gentílicas como herdeiras da bênção universal (vv. 8-9). Desta forma, a igreja, mais que uma simples continuação, é a legítima substituta de Israel no plano salvífico e universal divino (cf. 1Pe 2.9-10). A eleição de Israel, que se consolida na igreja, tem como função o serviço entre as nações. A missão da igreja, como expressa Carriker, consiste emproclamar os atos universais de Deus para o mundo. A eleição é para um relacionamento particular com Deus, para o mundo, não fora dele”.[1]

1.1.  A universalidade da missão
Por universalidade entendemos o alcance da obra de Cristo como provisão para todo o mundo, e a amplitude da oferta salvadora que não faz acepção de pessoas”.[2] Há uma continuidade do Antigo Testamento e o Novo Testamento no que concerne à universalidade do propósito salvífico de Deus. As bênçãos messiânicas, antes prometidas, agora têm cumprimento na pessoa e obra de Jesus Cristo em favor do mundo (Jo 3.17; 12.47).
O cântico de Simeão anuncia profeticamente a universalidade da obra de Jesus Cristo nos seguintes termos: “... os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de teu povo de Israel” (Lc 2.30-32).
A universalidade da salvação e do evangelho do reino são esteios da missão universal. A universalidade do plano divino foi de uma forma magistral, delineada pelo apóstolo Paulo, em Cl 1.15-20 e Ef 1.3-23. Deus é o Soberano Absoluto como Criador, o Senhor da história e o autor da salvação. Cristo, o enviado de Deus, é, antes de tudo, “a imagem do Deus invisível e o primogênito de toda a criação” (Cl 1.15).
Tudo concorre para a plenitude: o mundo todo (Cl 1.6), toda a criação sob o céu (Cl 1.23), cada homem (Cl 1.28).  Toda a criação veio a existir para ser sua possessão (Cl 1.16). Ele é o sustentáculo de todo o universo (Cl 1.17), tem a primazia sobre todas as coisas (Cl 1.18) e nele reside toda a plenitude (Cl 1.19).
Soberano sobre todas as coisas, Cristo e a igreja, como cabeça e corpo, formam um todo, pois a igreja é “a plenitude daquele que a tudo enche em todas coisas” (Ef 1.23). A igreja reconhece a intenção divina de “fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Ef 1.10).

1.2.    A necessidade universal do evangelho
A universalidade da queda, atingindo toda a raça (Rm 3.23; 5.12) e toda a natureza (Rm 8.21), define a necessidade universal da salvação. O evangelho é apresentado no kerigma Paulino comopoder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” tanto de judeus como de gentios (Rm 1.16). Neste estado, como diz Karl Muller, a justiça e a santidade de Deus fazem frente a uma decadência generalizada da raça humana.[3] A necessidade de salvação é suprida pelo amor e pela graça divina manifesta a todo o mundo (Rm 11.32; Tt 2.11).
A boa-nova que está radicalizada no amor de Deus Pai se manifestou no sacrifício da morte do Filho. Mas sem não há salvação e tal é dom de Deus e depende da pregação tão necessária para que o mundo conheça a Deus. Deste conhecimento dependerá a salvação de “todo aquele que invocar o nome do Senhor” (Rm 10.11). Mascomo, porém, invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de que nada ouviram? E como ouvirão se nãoquem pregue? E como pregarão se não forem enviados?” (Rm 10.14). Assim sendo, a salvação e o evangelho, em sua dimensão universal, caracterizam a eleição e a vocação universal da igreja.

2. A missão de Jesus como padrão para a missão da igreja
A oração sacerdotal de Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18); e o comissionamento dos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21) estabelecem o elo entre a missão de Jesus e a missão da igreja. Estas palavras de Jesus em referência aos Seus discípulos revelam substancialmente três verdades fundamentais.
A primeira é que Deus é o sujeito da missão. Sua missão consiste na restauração de toda a criação (o homem e o universo) atingida fatalmente pelo pecado e subjugada às hostes do mal. A execução de sua missão ocorre pelo envio de seu Filho Unigênito. Deus Pai o enviou como homem: Adão, novo Adão (Sl 8; Hebreus 2); como o “Filho do Homem” (cf. Daniel 7.14) e como o servo sofredor (cf. Isaías 53).
A segunda verdade oriunda das palavras de Jesus, em Jo 20.21, é que a missão da igreja fundamenta-se na autoridade soberana de Deus e de Cristo. Ao ser exaltado à destra do Pai, o Filho de Deus se torna o Soberano Árbitro do Mundo (cf. Mt 28.18). O mundo, após a glorificação de Cristo, passa a ter um Novo Chefe que envia sua igreja como serva ao mundo; o mesmo mundo que o Pai ama com amor imensurável (Jo 3.16).
A terceira verdade é que o ministério da igreja deve estar pautado no ministério de Jesus. As causas e o propósito da missão de Cristo e da igreja são respectivamente iguais. Por conseguinte, a missão de Jesus é padrão e modelo para a missão da igreja. Isto quer dizer que cada cristão é um enviado de Cristo assim como Cristo foi o apóstolo do Pai.

2.1. O tríplice ofício
O apostolado de Cristo foi transferido para a igreja. Cristo é o referencial para seus discípulos, pois basta ao discípulo ser como seu mestre e ao servo como o seu senhor (Mt 10.25). Uma vez que a missão de Jesus tomou forma e concretude em seu tríplice ofício de profeta, sacerdote e rei, a missão da igreja também o será. Segundo Charles Van Engen, “se a igreja se perceber continuadora do ministério de Cristo no mundo, ela o fará em relação à função tríplice de Cristo”.[4]
A igreja é uma comunidade messiânica que assume seu ofício profético ao exercer sua tarefa proclamadora do evangelho do reino. Ao agir como a comunidade mediadora, ministrando os serviços do culto e levando o mundo a conhecer e adorar o “único Deus verdadeiro”, ela o faz por meio de seu ofício sacerdotal. Por ter recebido as “chaves do reino dos céus” e promover em nome de Jesus a reconciliação entre o mundo e Deus, a igreja é nomeada como a “embaixada” do reino de Cristo no mundo (2Co 5.19-20) para exercer seu ofício realreino sacerdotal (2Pe 2.9) – executando as obras da realeza divina designadas por Cristo. Citado por Van Engen, Colin Williams declara: “Pode-se ver com facilidade que esses três ofícios estão intimamente relacionados às marcas da igreja na tradição da Reforma. A igreja está, dizem, [os reformadores], onde a Palavra é verdadeiramente pregada (profeta), os sacramentos são divinamente ministrados (sacerdote) e a santa disciplina é mantida (rei)”.[5]
Para que a missão da igreja seja pautada pela missão de Jesus é necessário que cada cristão tenha sua vida modela por Jesus. O Novo Testamento define o padrão de vida cristã com base na personalidade de Cristo. Desta forma, todo cristão teoricamente “tem” a mente de Cristo (1Co 2.6), e, conseqüentemente, deve pensar nas "coisas do alto" (Cl 3.2). Sua conduta e forma de pensar jamais devem estar em conformidade com os padrões deste século (Rm 12.1-2).
O que se deduz desse tríplice ofício apostólico da igreja é que a ela, por meio de sua voz e ação profética, clama por justiça e a põe em prática na sua comunidade. Por meio de sua ação sacerdotal, marca sua presença sacramental e reconciliadora, em seu contexto social, onde as pessoas a encaram como a comunidade mediadora da graça divina por vê-la oferecer-lhes a salvação pelo sacrifício expiatório do Cristo que nela habita. Finalmente, por meio de seu ofício régio, a igreja assume a incumbência de implementar e preservar os valores do reino de Deus na cultura, em todas as instâncias do poder e das relações humanas.
Para que a igreja seja bem sucedida no fiel cumprimento de sua missão externa, ela precisa de pessoas treinadas, isto é, moral, intelectual e espiritualmente habilitadas. Tal obra será realizada pela igreja no exercício de sua missão interna. Para tanto, o Senhor provê para a igreja “uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo" (Ef 4.11-13).
Outro detalhe fundamental no ministério de Jesus que serve de modelo para a igreja é que sua missão estava centralizada no reino de Deus. Ele não fazia do reino o tema de sua pregação evangelística, como também encarnava, em sua vida, os valores do reino. O estabelecimento do reino messiânico era, portanto, o cerne de sua missão.
Manfred Grellert aponta cinco aspectos que identificam o ministério de Jesus e que servem para modelar o ministério da igreja: um compromisso absoluto com a vontade do Pai, uma comunhão intensa e sistemática com o Pai, um estilo de vida marcado pelo serviço, uma preocupação com todos os homens e com o homem todo e um treinamento sistemático de líderes para sua obra.[6]

2.2. O mundo, campo da missão
O destino do Filho de Deus foi o mundo de Deus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). O Cristo preexistente e encarnado no homem Jesus veio ao mundo dos homens, não ao mundo ideal, mas ao mundo tal como ele é. Jesus enviou sua igrejacomo ele foi enviado” ao mundo geográfico da história, o mundo que, por causa do pecado e a influência das hostes do mal, tornou-se hostil a Deus. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.19) e entregou à sua igreja o “ministério da reconciliação” (2Co 5.18).
Deus criou o homem para que o homem vivesse com Deus; mas, ao pecar, o homem perdeu o direito à vida com Deus e, condenado à morte, vive no mundo sem Deus. Com a intenção de salvá-lo, o próprio Deus se tornou homem e realizou uma missão no mundo. Segundo Mt 9.35, Cristo, no exercício de sua missão, realizou três tarefas fundamentais: proclamação – “pregando o evangelho do reino”; discipulado – “ensinando nas sinagogas”; serviço“curando toda sorte de doenças e enfermidades”. Sua motivação residia em sua compaixão ao “ver as multidões [...] aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36).
As necessidades humanas, das quais as maiores vítimas eram os pobres e os oprimidos, foram o motivo principal para que Jesus encarnasse o espírito e o papel do Ebed Yahweh (Servo de Javé). A igreja de Jesus é uma igreja serva. Como disse Pedro Arana, “A igreja, assim como o Senhor Jesus, deve ser uma igreja do caminho e não do balcão. Ela não pode permanecer como espectadora da história: tem de descer para onde se travam as lutas reais dos homens. Ali se encontram as necessidades, que são o chamado premente da igreja para que possa cumprir sua missão”.[7]
O mundo é o campo missionário de Cristo e da igreja. Isto se torna bem claro na interpretação que Jesus deu respectivamente à parábola do semeador e à parábola do joio e do trigo. “O campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o joio são os filhos do maligno; o inimigo que o semeou é o diabo; a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos” (Mt 13.38-39). Nesta parábola, Jesus descreve o aspecto escatológico do reino, revelando que, na consumação dos séculos, os frutos da semeadura missionária haverão de ser colhidos. O mundo é simultaneamente campo da missão e campo da disputa, onde, no final de tudo, a humanidade estará dividida em duas partes: os filhos do reino e os filhos do maligno.






[1] Timóteo CARRIKER. Missão integral: uma teologia bíblica, p. 57.
[2] Emílio A. NÚÑES. Teologia y mision: perspectivas desde América Latina, p.101.
[3] Karl MÜLLER. Teologia da missão, p. 63.
[4] Charles VAN ENGEN, Povo missionário, povo de Deus, p. 105.
[5] Ibdem, p. 159.
[6] Manfred GRELLERT, Os Compromissos da missão, pp. 47, 48.
[7] Pedro ARANA, citado por Valdir Steuernagel em A serviço do reino, p. 86.

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